Vou começar este texto com uma confissão: há uns
tantos anos atrás, eu não gostava de falar de amor.
Esse comportamento reticente estava ligado a diversos
aspetos. Um desses foi o desenvolvimento da perceção de que grande parte da
escrita feminina é muito “cor-de-rosa”, sendo que muitas autoras, elas cheias
de diversas facetas, as negam, assumindo, também na sua escrita, o papel de
“boa moça”, doce, agradável e contida no papel feminino que se espera das
mulheres na sociedade ainda machista em que vivemos. Vejo, em muitas obras, uma
delicadeza imposta onde se floreia, enfeita e suaviza o que teria mais força nu
e cru. Onde falar de amor é falar “da luz dos teus olhos”, “do toque sedoso das
tuas mãos”, “da doçura da tua voz” e outras frases ditas tantas vezes, que me
pareciam repetitivas e um pouco tolas. Via o falar de amor um pouco como vejo a
questão de escrever um poema para a mãe, para o pai ou um hino sobre a chuva ou
o mar: um tema escorregadio onde resvalar em clichés é quase certo.
Ora, eu não gosto de clichés. Além disso, não sou
adocicada nem contida. Eu rujo, eu chio, eu ronrono e eu rosno. Sim, sou doce,
mas sou também salgada, amarga, picante e ácida. Toda a paleta de sabores. Da
mesma maneira que rasguei, na vida, o livro de regras e vivo pela minha
vontade, não enfeito a minha escrita com frases caramelizadas feitas para
estarem alinhadas com raciocínios feitos. Não alinho com realidades opressoras,
não me interessando escrever apenas para que seja bonito, mas para provocar: fazer
sentir, fazer pensar, fazer agir. Só escrevo sobre o que me é verdade. Só a
nossa verdade pode tocar o outro.
Assim, depois da minha fase adolescente, em que aos 15
anos escrevia vergonhosos poemas de amor e erotismo (coisas que não havia
sequer experimentado ainda, baseando-me em romances “cor-de-rosa” que havia
lido mas não vivido), por vários anos, recusei-me a falar de amor.
Até um dia em que, em virtude de um amor que se me
escapou ao controlo (o que eu teria considerado impossível), reconheci a
natureza intensa desse sentimento e entendi que nada de importante havia
escrito antes de o ter tocado, na vida e na escrita.
Assim, de alguns anos para cá, escrevi uma série de
poemas de amor. Eufóricos, tortuosos, vividos. Poemas onde se sentia. E
lancei-me em reflexões e pesquisas em mim, nos outros e na poesia.
Da amor como propulsor de aprendizagens: poesia
Com esse pensamento constantemente sintonizado com uma
necessidade já consciente de aprender mais sobre o amor e uma desconfortável
sensação de que algo muito importante, porém muito simples, me escapava, li um
poema do grande poeta português Luís de Camões, que me pareceu ter chegado,
mesmo a propósito, para dialogar comigo:
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois com ele tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semideia,
Que como o acidente em seu sujeito,
Assim co'a alma minha se conforma,
Está no pensamento como ideia;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.
Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"
As maiores conquistas são inspiradas por amor e as
aprendizagens mais profundamente vincadas na nossa vida dão-se com aqueles que
amamos. O amor é a via privilegiada de transmissão da nossa perspetiva da
realidade ao outro, formas de sentir, pensar e agir. Só o amor nos faz sair de
nós mesmos e tentarmos entrar em outro ser, posicionando-nos de modo a observar
a realidade do seu ponto de vista.
Nesse mesmo sentido, dias antes, tinha eu escrito um
poema, que assim dizia:
(…)
Na Aventura de viver
Vamos fazendo acontecer quem julgamos ser
Numa vida inteira sem saber
Que na forja da coisa que nos é mais amada
A nossa alma é na verdade cunhada
(…)
“Na forja da coisa que nos é mais amada, a nossa alma
é na verdade cunhada”. Chegamos ao mundo sem formas. As mãos que aquecem os
nossos corações são as mãos que nos vão dando contornos. Desde as mãos que nos
embalam o berço aos mestres que nos apontam caminhos e colegas da escola e da
vida que nos dão a mão, vamo-nos moldando e ganhando contornos que são fruto de
aprendizagens por observação, experimentos e condicionamentos, que levam à
absorção de fragmentos da visão que o outro tem do mundo. Transformamo-nos numa
coleção arranjada ao nosso belo prazer, de pedaços que por aí recolhemos. Do
outro. Sobretudo, o outro que não é um outro qualquer, mas um outro
significante, em uma relação de intensidade emocional marcante.
Assim, essa absorção não se limita a traços positivos.
Adotamos, igualmente, comportamentos negativos das pessoas que mais amamos, num
processo de absorção e reprodução inconsciente a que eu chamaria de poluição
emocional. Estados de pensamento e comportamento que já criticamos infiltram-se
assim no nosso modo de agir.
Da amor como propulsor de aprendizagem: ciência
Trazendo a ciência para dialogar com essas minhas
perceções pessoais e esse tanto de poesia, percebi que diversas pesquisas têm
sido levadas a cabo, relacionando as emoções e a aprendizagem. Pesquisadores do
Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT; 2010), em Boston dedicaram-se a
esse tema utilizando um sensor eletrotérmico para medir a atividade elétrica no
cérebro de estudantes universitários durante 24 horas por dia, durante sete
dias. O resultado da pesquisa mostrou que a atividade cerebral nas aulas estilo
palestra era equiparável a registada quando o estudante assistia televisão:
praticamente nula (Menárguez, 2016) Isso demostra
que a aprendizagem não se dá quando ocupamos um papel de recetor passivo, mas
sim quando ativamente nos engajamos no processo. Corroborando com esta
perspetiva, diferentes correntes surgiram nas perspetivas atuais das ciências
de educação, que pretendem transformar o modelo educacional. Uma delas é
a neuro didática, que defende que a aprendizagem dá-se quando o cérebro
está em atividade. Essa não é, no entanto, uma perspetiva nova. Diversos
teóricos do campo das ciências da educação haviam já apontado nesse sentido. Já
em 1982, dizia-nos Herbert Read, teórico fundamental das bases da educação pela
arte: “ O fim da educação (…) é a
preparação de cada criança para o seu lugar na sociedade, não apenas no seu
aspecto vocacional mas também espiritual e mental, então não é de informação
que ela necessita: é de sabedoria,
equilíbrio, auto-realização, gosto – qualidades que apenas podem provir de um
exercício unificado dos sentimentos para a actividade de viver”.
Corroborando com essa mesma perspetiva, encontramos, o Mayor, ex-Director-Geral
da UNESCO (Morin, 2002) que elenca, entre os sete saberes para uma educação do
futuro, a questão da Identidade Humana.
Morin insiste nessa dimensão como uma dimensão fundamental, a ser tida em conta
tanto no que toca às ciências da
educação como nas ciências sociais em geral.
O autor traz-nos, nesse contexto, uma reflexão sobre a
poesia, que me pareceu muito interessante já que comecei esta reflexão,
realmente, a partir da poesia:
Chegamos, então, ao
ensino da literatura e da poesia. Elas não devem ser consideradas como
secundárias e não essenciais. A literatura é para os adolescentes uma escola de
vida e um meio para se adquirir conhecimentos. As ciências sociais vêem
categorias e não indivíduos sujeitos a
emoções, paixões e desejos. A literatura, ao contrário, como nos grandes
romances de Tolstoi, aborda o meio social, o familiar, o histórico e o concreto
das relações humanas com uma força extraordinária.(…) o amor, a morte, a doença, o ciúme, a
ambição, o dinheiro. Temos que entender que todos esses elementos são necessários para entender que a vida não é aprendida somente
nas ciências formais. E a literatura tem a vantagem de refletir sobre a
complexidade do ser humano e sobre a quantidade incrível de seus sonhos. (…) o
homem racional e fazedor de ferramentas, que é, ao mesmo tempo, louco e está
entre o delírio e o equilíbrio, nesse mundo de paixões em que o amor é o cúmulo da loucura e da sabedoria.
Morin, 2002 (passagens a negrito destacadas por mim)
Diversos cientistas concluíram que as informações do
lado direito do cérebro (relacionados a intuição, criatividade e imagens) são
mais facilmente processadas. Assim, mais do que o que se diz, o nosso cérebro
capta os gestos faciais e corporais e o contexto. Adicionalmente, há que
considerar que o nosso cérebro é, como nós, um órgão social, que aprende
relacionando-se com outras pessoas. O processo de aprendizagem passa pela
motivação, que gera atenção e finalmente se cristaliza na memória.
Assim, fica claro que, quanto mais forte é o laço que
estabelecemos com o outro, maior é a motivação, logo, maior a atenção e assim,
mais profundamente estão as aprendizagens vincadas na nossa memória. E que
outro sentimento é tão intenso como o amor?
Da intensidade do amor
Por amor acontece tudo o que é belo no mundo. E também
por amor, acontecem as maiores tragédias dos homens. É o único tema que
realmente interessa a quem sabe o que é importante para a vida. É o motivo
subjacente ao que motiva o homem a agir.
Digo-o e vou pensando: o primeiro colo; os primeiros
sorrisos; o sacrifício dos heróis do quotidiano em prol do amor; o sucesso
insuperável de um casal que resolveu empenhar as suas forças conjuntas numa
direção; a criatividade inflamada de casais cujo amor se encontra na partilha
de áreas de interesse coadjuvantes; a vontade; o desejo; os sentidos exaltados;
a poesia dos olhares; os corpos que se procuram como se nenhum outro o pudesse
substituir; o clássico suicídio por um amor não correspondido; o drama da posse
da pessoa amada; o medo infundado da perda; a tristeza do amor não
correspondido; a dor da rejeição; os triângulos amorosos; a insistência em
continuar o que parece acabado; o terminar e deixar de se falar quando, um dia,
se acreditou que a vida sem esse outro não faria sentido; o ser-se magoado e, a
partir daí, vingar-se continuamente (na pessoa que provocou o dano, de forma
propositada ou inadvertida, ou ainda na próxima pessoa, inocente, que se
lança no carrossel de emoções que é amar uma alma indisponível); o
medo; a dor.
O amor é uma força que não pode ser subestimada. Pode
começar guerras, mas também as pode acabar. Por vezes magoa e deixa profundas
cicatrizes; por vezes cura aquilo que parecia não ter cura. Dá coragem para
aquilo que nunca se pensou ter coragem, faz pessoas inteligentes agirem como
tolas, sádicos cruéis passarem a ser capazes de gentilezas imensas, preguiçosos
moverem montanhas, descrentes voltarem a acreditar, crentes perderem a fé,
pessoas controladas perderem a compostura e pessoas de moral insuspeita e
valores fortes cometerem atos que conspurcam as suas crenças.
Das mudanças, ou como os outros nos tocam
Há experiências que nos transformam profundamente, assumindo-se como um
gatilho que despoleta de repente uma explosão em cadeia, alterando as nossas
ideias e sentimentos em relação a nós próprios e a tudo o que nos rodeia e,
consequentemente, a nossa visão daquilo que podemos fazer, ser, desejar e
aceitar. Essa transformação pode ser evolutiva, conduzindo-nos para um estado
de consciência superior ou uma regressão, motivada por eventos traumáticos
(que, ao contrário do que se possa pensar, não são apenas grandes eventos,
podendo ser um somatório de pequenas ações e/ou palavras que, vindas daqueles
que mais nos importem, firam a nossa mais privada conceção de quem somos). Há
coisas simples, que podem mudar uma vida, para melhor ou pior: uma palavra de
amor ou desamor, a compreensão inesperada daquilo que se julgou que não seria
entendido, um abraço quando a falta de tal se faz sentir, uma palavra de
incentivo de quem mais se espera ou, por outro lado, a frieza da incompreensão
e a falta de diálogo. Há coisas que ferem e há coisas que curam.
E há pessoas
nucleares, com poderes de cura ou destruição amplificados. Cada um de nós tem
um poder enorme nas nossas mãos: o poder de marcar o outro, fazendo-o maior ou
menor em segundos apenas. Que o nosso ego nos permita pedir desculpas, aceitar
desculpas, dizer por favor e obrigada e falar de amor. “Amo-te”. Uma palavra
tão pequena e tão poderosa. Que, por parecer tolo, muitos vivem uma vida
inteira sem o pronunciar ou ouvir. Que o nosso ego nos permita aceitar a luz do
outro e entender que a luz do outro não apaga a nossa, que podemos brilhar
juntos, que ele nos permita entender que não somos perfeitos por tudo conter e
tudo poder fazer mas sim perfeitos na nossa imperfeição de não nos bastarmos e
sim, precisarmos do outro para ir mais longe. Nós não nos somamos. Nem nos
subtraímos. Nós nos multiplicamos ou dividimos. Que o nosso ego nos permita
escolher a operação certa e crescer. Crescer sem parar, todos os dias um pouco,
naquele sitio em que tal não se vê: por dentro.
REFERÊNCIAS:
MORIN,
Edgar. (2002). Os sete saberes para a
educação do futuro. Lisboa: Instituto Piaget.
READ,
Herbert. (1982). A Educação pela Arte. Lisboa: Edições 70