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quarta-feira, 5 de setembro de 2018

AMORES E DEMÓNIOS



Ouve:

se te fores apaixonar por mim, apaixona-te no inverno.



Imagem: Pixabay

























Vem, chega de mansinho,
quando neva-me a alma
Olha-me para os pés descalços,
e entende que tenho os pés ao frio,
que o vento agreste gela-me, aos poucos,
os dedos e o espírito.

Presta atenção:
ouves o grito desesperado da minha alma de amar?
Só a podem ouvir os mais atentos.
Aqueles que conseguem ver para lá do aparente.
Está presa. Mas debate-se, inconformada.
Cercam-na os demónios dos temores
que em tempos que já lá vão,
no meu mais frio inverno,
me saquearam a vontade
e em mim fizeram casa.

Durante todo o ano, domem.
Acordam quando o inverno me possui,
famintos de mim.
Segredam-me coisas terríveis.
Impingem-me visões daquilo que eu temo.
"Mentem!", penso. E tento gritar.
"Mentem!", a voz queda-se muda. "Talvez seja verdade!"
"Mentem?", pergunto a medo.
Quero que alguém me ofereça outras verdades.
Mas no silêncio do mundo
perante a dor dos que sofrem,
só tenho essa voz para ouvir.
“Assim é. Que pena que assim é!", convenço-me.

Estou no meu inferno.
“o Inferno são os outros”, disse Satre
Mas não: o inferno está em mim.
É tão meu como o meu paraíso:
Só eu o vejo, só eu o entendo.
Os meus demónios dançam-me a volta
Cospem-me palavras que não quero ouvir
Peço-lhes silêncio mas não se calam;
preparam o festim.
Eu sou o banquete.

Trago a calma atormentada
Mas estou mais quieta do que nunca.
Tenho as extremidades entorpecidas.
Há um elefante pesadamente sentado na minha vontade.
Onde está a minha alma de falcão?

No inverno sou outra.
E tenho medos.
Nem falcão nem gente,
fantasma que sente.

Mas se te fores apaixonar por mim, digo-te:
Apaixona-te no inverno.

Acende uma fogueira,
faremos chá.
Olharemos, em silêncio, para as minhas ramas despidas.
Não me pedirás sorrisos.
Verás o que mais ninguém vê: o orvalho das minhas lágrimas.
Saberás que sim, que eu também choro.
Já te disse que nem todos os amores são para todas as estações?

Diferentes dos amores de verão,
ou dos encantamentos sedutores da primavera,
são os filhos do inverno.
Crescem no gelo,
plantam as sementes da resistência.

São fortes.
Ah, que belos e fortes, na sua elegância silenciosa!

É normal gostar da primavera.
Haverá quem não goste?
Mas procuro pessoas que também gostem do inverno.
É que, sabes, sou apaixonante na primavera!
Deveras.
Digo-o sem vaidades mas falsa modéstia, também:
Brilham-me os olhos,
caminho confiante,
cativo homens, mulheres e deuses
Mas não me deixo cativar.
É que na primavera, eu não sou flor,
sou borboleta.

E o meu verão?
Já te contei?
Sou quente,
A dose certa de aventura
Um sopro de liberdade nas tuas correntes

Mas se te fores apaixonar por mim, por favor,
apaixona-te no inverno.

No inverno sou outra
E tenho cautelas
Nem me dou nem me vou
Nem rio, nem choro. Espero. 

Se me conseguires chegar no inverno,
talvez te mostre um amor de todas as estações.

Na primavera já não seria borboleta,
terias feito casa no meu coração.

(Ah! Como gosto dessa ideia!)

Sim! Que a primavera nos surpreenda
Seria assim: eu e tu, lado a lado, como sempre.

(O sempre é importante, sabias?
Nada substitui a constância do querer que não se cansa.)

O meu silêncio seria amigo do teu.
A fogueira acesa à qual, à vez,
lançávamos pequenos torrões de carvão,
teria durado até ao último nevão.
Os meus demónios estariam silenciados pela tua presença,
encolhidos ao calor dessa paixão invernal.
Depositaria a caneca que me aquecia as mãos.

(Para quê o chá, se a tua presença me encheu de calor, já?)

Entrelaçaria nos teus dedos os meus,
olhar-te-ia de frente, desperta,
a profundidade do meu olhar no fundo da tua alma.
O feitiço invernal estaria, então, quebrado.
A primavera irromperia, pelas portas, frestas e janelas de mim. 

Na primavera sou águia, sou falcão, furacão.
Na primavera, serei tua guerreira.
Descansarás da tua longa vigília
e dar-me-ás a domar os demónios que te inquietam.
Carregar-te-ei às costas,
Entre as asas da minha gratidão.
Levar-te-ei a voar.
Sabias que eu tenho asas?

No verão, atravessaremos o mundo,
em aventuras que te tirarei aos sonhos

E assim viveremos, até que chegue o Outono,
e me aquiete, sempre ao teu lado.
Verás, nos meus olhos, que vem aí o inverno.
Recolherás com carinho as minhas folhas caídas.
A minha nostalgia não te assusta.
O silêncio do outono que me cobre é teu amigo.
Agarras um livro,
acendes a fogueira.
O inverno está próximo,
mas tu estás cá.
Faremos um boneco de neve.


© Janice da Graça      

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