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terça-feira, 13 de março de 2018

Ru e Maria




Sentado no Baloiço. Ilustração: Alaissa De Chavez, pngtree
Foram mais de 30 anos de vida conjunta. Construíram uma vida de coisas pequenas, mas cheias de significado. Tinham um jardim, de rosas viçosas, plantado ao pé de casa. À porta amarela, a árvore bem cuidada e o velho baloiço, salpicado de rosa. A casa era pequena e transbordava de memórias. 
Ali o chapéu, daquela viajem ao Macau, acolá os álbuns poeirentos, de páginas amareladas.
Ru colhia, todos os dias, uma flor para sua amada, para lhe recordar que, para cada espinho, há uma rosa. Maria aceitava a rosa, e sorria, recordando-se que, para cada dor, havia um carinho.
Maria, embrulhada no xaile roxo, sentava-se no baloiço. Um esboço de baloiçar prolongado, assistindo o sol tocar o horizonte. A mão trémula, a cabeça, sem cabelos, recostada. O olhar perdido no horizonte, na miragem dos filhos que se haviam perdido no mundo com o tempo. Sem tempo, também.
Maria tinha três filhos, nascidos da sua anterior relação. O primeiro tinha chegado de repente e, com ele, um casamento apressado. Os outros vieram logo a seguir, trazendo anos de sentido a um casal que em muito pouco se entendia. Três filhos. Por anos, a razão de uma vida. Toda a sua vida. Até que conheceu Ru. Ru de olhos brilhantes e sorriso encantador. Ru que era como o mar, em dias de calor. Ru que lhe fazia nascer poemas e pinceladas coloridas em telas brancas. E soube o que era, na verdade, amar.
Separou-se. Poderia ter sido apenas o outono de uma relação entrelaçando-se à primavera de uma outra. Mas não o quis assim o destino. O inverno de permeio foi demasiado intenso. Laços congelaram e partiram-se na frieza da incompreensão. Maria nunca mais viu os filhos, desde que se mudara, para esse cantinho isolado, deixando para traz uma parte do coração.
Os dias passaram-se. A cada dia, Maria levantava-se mais leve, mais pálida, mais triste.
Os dias passaram-se. A cada dia Ru, com o coração mais apertado, era mais rocha, mais porto, mais calor.
Os dias passaram-se. Em cada dia, o telefone quedou-se mudo, o horizonte deserto, os biscoitos de canela de longínquos dias de infância esquecidos na poeira dos tempos.
Rute tinha 81 anos. Maria tinha 75. Rute era cheia de vida. Maria era cheia de morte. Cancro.
Um dia chegou. E foi o último.
Maria cheia de paz, de mãos postas, na sua última cama. Rute cheia de dor, só, na cadeira salpicada de cor-de-rosa, com o olhar posto no horizonte.
Esse dia chegou e foi um dia estranho. O telefone tocou, um carro chegou, os biscoitos de canela eram o tema do dia. Nesse dia, biscoitos de canela cheiravam a dinheiro.
O caixão esteve cheio de flores, os filhos e as noras choraram, depositaram algumas flores e secaram as lágrimas. O tempo era pouco e havia pressa. A casa era da mãe deles, constava. Tinha-a construído com o seu salário de professora e com o lucro dos belos quadros que havia pintado. O que era da mãe, era deles agora, segundo entendiam. Assim o afirmava a lei. Rute? Ah, Rute era doméstica, coitada. Diziam que fazia um guisado fabuloso. «Sim, sim, Rute, obrigadinho por fazer companhia à nossa mãe nos seus últimos dias. Sim, sim, foi uma boa amiga. Deseja levar algo da casa? Um quadro talvez, de recordação? A casa? Venderemos, claro! É muito distante e o dinheiro nos deixa falta. Esperava cá ficar? Ora, mas que estranho, Rute! Afinal, já cá viveu tantos anos. E nem pagava renda, ao que conta. Deve lá ter as suas poupanças, não tem? Para onde há de ir? Ora isso não sei. Não tem ninguém? Ora, de certeza que há de ter alguém! Mas que pena! Ah, más há um lar de idosos muito acessível não muito longe daqui. Será de certeza bem acolhida.
Não se preocupe que tudo se há de arranjar! O tempo é pouco, Rute. O tempo urge! Já vamos andando. Fica o advogado a tratar de tudo. Olhe, Rute, as melhoras para o seu reumatismo. Tudo se há de arranjar, tenha fé em Deus. Sabe que isso é assim. É a lei. Nem é para nós, é para os netos, bem vê. A família, nesses casos. Mas hei de examinar a situação. Talvez lhe mande algum dinheiro, que eu bem gosto de ajudar. Vá, fique com Deus, fique com Deus. E obrigado por tudo, Rute. Obrigado, obrigado!».
Um dia chegou, e foi o último.






Nota: este texto foi originalmente publicado no dia 17 de Julho de 2017, na minha página pessoal do facebook. Foi escrito em reação a uma publicação feita pelo Sr. Miguel Monteiro, Secretário de Estado do Governo de Cabo Verde, na sua página pessoal do facebook, em que este afirmou ser 200% contra o casamento homoafetivo, justificando-se com passagens do Antigo Testamento (num estado laico!), e defendendo que quem vivia esse tipo de relação mereceria a morte. Este texto foi um hino ao amor e a liberdade, posicionando-se entre as vozes que se levantaram em protesto, afirmando-se 200% a favor.

Para quem não tenha acompanhado a polémica, fica o link para uma notícia a respeito, publicada no Jornal a Nação:
http://anacao.cv/2017/07/11/miguel-monteiro-usa-biblia-contestar-casamento-gay-atacado-internautas/

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