Ouve:
se te fores apaixonar por mim, apaixona-te no inverno.
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Imagem: Pixabay |
Vem, chega de mansinho,
quando neva-me a alma
Olha-me para os pés descalços,
e entende que tenho os pés ao frio,
que o vento agreste gela-me, aos poucos,
os dedos e o espírito.
Presta atenção:
ouves o grito desesperado
da minha alma de amar?
Só a podem ouvir os mais atentos.
Aqueles que conseguem ver
para lá do aparente.
Está presa. Mas debate-se,
inconformada.
Cercam-na os demónios dos
temores
que em tempos que já lá vão,
no meu mais frio
inverno,
me saquearam a vontade
e em mim fizeram casa.
Durante todo o ano, domem.
Acordam quando o inverno
me possui,
famintos de mim.
Segredam-me coisas terríveis.
Impingem-me visões daquilo que eu temo.
"Mentem!", penso. E tento gritar.
"Mentem!", a voz queda-se muda. "Talvez seja verdade!"
"Mentem?",
pergunto a medo.
Quero que alguém me ofereça
outras verdades.
Mas no silêncio do mundo
perante a dor dos que
sofrem,
só tenho essa voz para
ouvir.
“Assim é. Que pena que assim
é!", convenço-me.
Estou no meu inferno.
“o Inferno são os outros”,
disse Satre
Mas não: o inferno está em
mim.
É tão meu como o meu
paraíso:
Só eu o vejo, só eu o
entendo.
Os meus demónios dançam-me
a volta
Cospem-me palavras que não
quero ouvir
Peço-lhes silêncio mas não
se calam;
preparam o festim.
Eu sou o banquete.
Trago a calma atormentada
Mas estou mais quieta do que nunca.
Tenho as extremidades entorpecidas.
Há um elefante pesadamente sentado na minha vontade.
Onde está a minha alma de falcão?
No inverno sou outra.
E tenho medos.
Nem falcão nem gente,
fantasma que sente.
Mas se te fores apaixonar
por mim, digo-te:
Apaixona-te no inverno.
Acende uma fogueira,
faremos chá.
Olharemos, em silêncio, para as minhas ramas despidas.
Não me pedirás sorrisos.
Verás o que mais ninguém vê: o orvalho das minhas lágrimas.
Saberás que sim, que eu também choro.
Já te disse que nem todos
os amores são para todas as estações?
Diferentes dos amores de
verão,
ou dos encantamentos sedutores da primavera,
são os filhos do inverno.
Crescem no gelo,
plantam as sementes da
resistência.
São fortes.
Ah, que belos e fortes, na sua elegância silenciosa!
É normal gostar da
primavera.
Haverá quem não goste?
Mas procuro pessoas que
também gostem do inverno.
É que, sabes, sou
apaixonante na primavera!
Deveras.
Digo-o sem vaidades mas falsa modéstia, também:
Brilham-me os olhos,
caminho confiante,
cativo homens, mulheres e
deuses
Mas não me deixo cativar.
É que na primavera, eu não sou flor,
sou borboleta.
E o meu verão?
Já te contei?
Sou quente,
A dose certa de aventura
Um sopro de liberdade nas tuas correntes
Mas se te fores apaixonar
por mim, por favor,
apaixona-te no inverno.
No inverno sou outra
E tenho cautelas
Nem me dou nem me vou
Nem rio, nem choro. Espero.
Se me conseguires chegar
no inverno,
talvez te mostre um amor
de todas as estações.
Na primavera já não seria borboleta,
terias feito casa no meu coração.
(Ah! Como gosto
dessa ideia!)
Sim! Que a primavera nos
surpreenda
Seria assim: eu e tu, lado
a lado, como sempre.
(O sempre é
importante, sabias?
Nada
substitui a constância do querer que não se cansa.)
O meu silêncio seria amigo
do teu.
A fogueira acesa à qual, à vez,
lançávamos pequenos torrões
de carvão,
teria durado até ao último
nevão.
Os meus demónios estariam silenciados pela tua presença,
encolhidos ao calor dessa paixão invernal.
Depositaria a caneca que me aquecia as mãos.
(Para quê o
chá, se a tua presença me encheu de calor, já?)
Entrelaçaria nos teus
dedos os meus,
olhar-te-ia de frente, desperta,
a profundidade do meu olhar no fundo da tua alma.
O feitiço invernal estaria,
então, quebrado.
A primavera irromperia, pelas portas, frestas e janelas de mim.
Na primavera sou águia,
sou falcão, furacão.
Na primavera, serei tua guerreira.
Descansarás da tua longa vigília
e dar-me-ás a domar os demónios que te inquietam.
Carregar-te-ei às costas,
Entre as asas da minha gratidão.
Levar-te-ei a voar.
Sabias que eu tenho asas?
No verão, atravessaremos o
mundo,
em aventuras que te tirarei aos sonhos
E assim viveremos, até que
chegue o Outono,
e me aquiete, sempre ao teu lado.
Verás, nos meus olhos, que vem aí o inverno.
Recolherás com carinho as
minhas folhas caídas.
A minha nostalgia não te assusta.
O silêncio do outono que me cobre é teu amigo.
Agarras um livro,
acendes a fogueira.
O inverno está próximo,
mas tu estás cá.
Faremos um boneco de neve.