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domingo, 27 de janeiro de 2019

ANGÚSTIAS, DEMÔNIOS, PALAVRAS E SILÊNCIOS




Ela deitou-se, fechou a porta e a alma. Não sem antes, e apesar de que o sol já havia nascido, se vestir como se fosse ao polo norte. O inverno da alma também gela o corpo. Colocou um cachecol, um gorro, uma camisa e um casaco, um calção, umas calças de fato treino forradas e completou com um par de meias. E ainda assim, tinha frio. Tinha-se apercebido de que haviam letras que, conjugadas em determinadas frases, eram como o inverno. Também percebeu que há mensagens escritas que são como gritos. Ela nunca gostara de gritos. Também percebera que discussões por texto não acabavam em abraços. E ela vivia de abraços.

Já te aconteceu teres a cabeça tão cheia de ruído que os teus ouvidos ficam surdos à razão? Sentes, com toda a força, que qualquer palavra a mais te poderia trasbordar. Queres tapar os ouvidos para não as ouvir. Queres furar os olhos para não as poder ler. Queres falar, mas não consegues. Queres dizer que não, que não é assim. Não, não é isso que pensas. Não, não é isso que disseste. Não, não é isso que queres. Sobretudo, não, não é isso que sinto. Sentir é um ato tão privado. Tão teu. E atrevem-se a dizer-te o que sentes. Queres pedir que te oiçam a alma. As verdades naquilo que dizes. As respostas não condizem com as tuas perguntas. Às tuas inquietações, fazem eco inquietações simétricas. Acusação por acusação. Inquietação por inquietação. Medo por medo. O que fazer? Repetes ou silencias-te?

Ela apercebe-se que há silêncios que são algemas. Como se pode falar quando os pensamentos estão meio a ferver, meio congelados? Senta-se no chão, tapa os ouvidos e pede que parem. Que os pensamentos em carroceis de luzes vertiginosas abrandem. Precisa parar um momento.

Disparam-te palavras acusatórias. Sentes-te tonto e enjoado. Apetece-te uma pausa.

Dormir. Mas ela já havia dormido todo o tempo que o seu corpo aguenta. Tapa a cabeça e pede que pare. Por Deus, que pare. Decorrem horas e eles estão ali. Prendendo-lhe os braços e as pernas, estrangulando a sua respiração, estão as acusações injustas, as palavras que substituíram a verdade, a pintura distorcida das suas intenções na boca dos outros. Fraca, desnutrida dos abraços que estão já em memórias distantes, estranha em sua própria casa, esconde-se sozinha. Mas o barulho é demasiado intenso. Ensurdecedor. Os seus pensamentos gritam, chiam, ladram. E mordem.

Precisas de mais espaço a tua volta, para não sufocares. Precisas do barulho de gente, para não ouvires os teus pensamentos. Ecos. São ecos. Os pensamentos não são os teus. Precisas de novos olhos, que afastem esses rótulos. Que te reafirmem, que te digam, que não são teus. Tens medo de acreditar. Queres ver gente. Esperas o tempo de dois cigarros que qualquer coisa aconteça. O que esperas? Um olhar que te entenda? Não, já acreditas que esse não há-de chegar. Só tu consegues ver. A tua voz está silenciada no teu corpo desde que te mandaram calar. Não podes dizer. Vai passar.

Era para serem dois, mas ela esperou um pouco mais. Esperou o tempo de três cigarros e uma semi-desistência. Já se tinha dito que não se poria com essas coisas, mas as vezes só conseguia calar momentaneamente o barulho e fingir estar presente, iludindo os seus demónios, sempre em movimento, enquanto estes a espreitam, pelos poros da noite. O esforço para viver de verdade está, nesses momentos, fora do seu alcance. “Vai passar”, pensa. “Vai passar”, pede. À Deus? Tem os olhos postos nas estrelas (é, ainda, uma sonhadora). O coração vai embrulhado no estômago. A alma está em estado de reclusão. Fecha os olhos. “Permita que passe, por favor”, pede novamente. Às forças do Universo? Repete os seus mantras, enraíza-se no presente e procura calar as angústias. Passou. Mas e se voltar?

E tens que aprender que ela há sempre de voltar. Sempre que, no mesmo prato, servires doses desiguais de esperança e medo. A esperança deveria cobrir o medo. Mas, por vezes, desaprendemos a arte de preparar o prato e lançamos o medo para cima da esperança, como quem serve o feijão por baixo e o cobre de arroz. A esperança é o fogo que ateia a ansia de viver. O medo é um elefante pesadamente sentado na tua vontade. Notas que ainda te sabes servir: o medo por baixo, em dose de dieta e a esperança por cima, em dose abundante, e percebes que precisas dizer.

Ela diz-se que quase duas semanas de silêncio foram demasiadas. Espanta-se com a forma como está desnutrida. Procura na sua gaveta de habilidades e percebe que tem perdido algumas. Não do dia para a noite, mas aos poucos, sem que notasse. Nada se perde do dia para a noite. Tudo é uma sucessão de pequenas escolhas. A capacidade de decidir esquecida entre angústias, a capacidade de encontrar soluções perdida entre tentativas frustradas. Percebe, no entanto que a mordaça na sua alma fora por ela lá colocada.

A conversa está a distância das tuas palavras e queres dizer. Acreditas que vai ser desta. “Mas e se não for?”, ouves. Sim, também está lá o medo, fazendo sombra à esperança que trazes no peito. Mas queres saber. Queres muito saber. “Perguntas ou calas-te?”

Sentam-se frente a frente. Ao ar livre, pede ela, com medo de sufocar e não poder falar. Cobre-se, mas não demasiado. O frio mantem-na atenta. Testa a temperatura da água: gelada. Quer-se despir e percebe que se despe sozinha. Tira uma peça, os olhos fincam-se na sua alma desnuda. Um monólogo em striptease que ecoa no silêncio cheio de pudor da outra parte. “Nada tenho a dizer”. Nem a entender, é o que subentende.
Ela traz as suas vergonhas e os seus medos, todos embrulhados em silêncio. Ferem. Traz também questões, que queimam. Não se quer despir e quedar-se assim, nua, qual um quadro de um pintor incompreendido sob o escrutínio de um crítico demasiado ciente do seu papel. Ela queria era uma dança de almas nuas e um abraço intimo e eterno. Mas vinha ferida já. Quanta pele da sua alma se atrevia ainda a mostrar? Apetece-lhe um colo para chorar as dores que lhe calcam a alma mas faz-se de forte. Não que não o fosse, mas já não o consegue sentir. Está cansada. Precisa, antes de se despir, saber que é ali o lar. Que o espaço é seguro. Que a porta não será deixada aberta, para que os seus demónios a visitem a noite, quando estiver indefesa. Quer saber que pode dormir. Que não precisará, amanhã, partir. Que ali cabem os seus braços, de dedos demasiado longos, as suas ancas, os seus cabelos, os seus sonhos, demasiado grandes e a sua vontade, demasiado premente.

Já conheces essa dança, mas tentas um movimento diferente e pedes, em silêncio, que no final, haja encontro. Mas já não sabes pedir. As perguntas trazem-te as respostas de sempre. Era o que esperavas ouvir mas a dor é, a mesma, virgem. Ninguém se despiu contigo e tu não te despiste o suficiente. A coragem não te chegou completamente. Duas almas que antes se aconchegavam, nuas, dormiam agora vestidas, em camas separadas. Dói. Ao frio, relembrar um abraço dói. No limiar da possibilidade de um voo, querias que fosse desta. Mas houve palavras malvadas que cutucaram os teus medos, que se agarraram às tuas entranhas, a beira do salto. Ficaste em terra.

Ela retira-se, de alma vencida. Leva um reino ruído e um cavalo murcho. Na memória, mais palavras para voltar a ouvir nas suas noites de silêncio e nos seus dias sem sol. Leva consigo outros filhos da noite, que calcam a fé. Uma noite insone, uma manhã que se transforma em noite e de novo uma tentativa de esquecimento, mais horas do que o devido, nos braços de Morfeu.

A vida para, mas a luta continua. Tens que perceber que, seja qual for o estado de conservação da tua alma, precisas ir lá fora e sorrir. Precisas ir lá fora e brilhar. Porque pessoas que têm dores são esquecidas. Os que não se levantam são sepultados. Sais. Já és boa nisso. Tens tido muitas oportunidades para o treinar. A tua voz quase soa normal. Ninguém nota que o teu mundo te desaba por dentro. Lá fora, entre poemas e fonemas, parece que há uma porta que se abre. Percebes que há algo em ti que ainda não foi vencido. Tentas. Ainda não lhe sabes dizer que não. Que mal fará ouvir? Ou responder? Acreditas que, em algum lugar, estará escondida uma palavra que faça diferença para ser dita ou ouvida ou um silêncio que traga paz. Falas. Trazes respostas de uma descobardada sinceridade. Se é suposto que estejas em casa, precisas dizer que és tu. Precisas poder mostrar e curar as tuas feridas. Precisas gritar as tuas verdades. Tentas.

Nesse dia, ela aprende uma importante lição: se há silêncios que são algemas há, também, conversas que são armadilha. Nessa, perguntas não nos são feitas para se procurar entender e as palavras da direita procuram atingir fins à esquerda. Não há uma hora de falar e uma hora de calar. Cada um grita, sem tino, as suas verdades, ou mentiras, conforme a escolha. Numa teia de desentendimento, cada movimento a leva mais próximo da sua perdição.  

Há ouvidos que são de pedra. As nossa dores batem e refletem. Nós, inconscientes da falta de vontade de entender, de coisas maiores mais importantes do que nós, já enraizadas no outro, repetimos, citamo-nos, exemplificamos. O entendimento não acontece. “Espera! Não foi isso que disse!”, dizes, e não te ouvem. “Espera, não é isso que sinto!”, pedes, e não te entendem. Então, há vazios que se colam a tua alma, marcando-a a ferro. Pensas que precisas aprender a não te despir assim. A tua alma gela, ao frio e questionas-te sobre a importância da verdade. A cada vez que o coração é magoado, as feridas são mais profundas. Sentes que há dedos que mexem onde ainda nem sequer havia sarado. Trazes o coração esfolado e um coração esfolado, senhores, é uma tragédia. 

Ela olha para cima, do fundo do poço e procura as reentrâncias que sabe que lá estarão. Já fez essa escalada antes, mas o caminho era diferente. Enquanto procura a saída, entende que todas as tragédias começam em conto de fada. O inferno pode ser já aqui ao lado, num dia comum, pela ausência do paraíso vivido ou sonhado. A perda do que se constrói é uma perda visível, mas recuperável. A perda dos sonhos é uma tragédia da vida.

O inferno é sempre por dentro, só nosso, muito nosso. Os gritos, quando os nossos demónios nos esfolam a alma, só nós os podemos ouvir. Mas o amor faz olhar nos olhos. E quem puder observar os nossos olhos, verá o nosso medo. Só o amor salva. Salve-se, por amor e salve, com amor. 





quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

ESCREVER COMO QUEM AMA


Há dias em que lemos frases que nos salvam. Eu fui salva, várias vezes, por um poema que se infiltrou na noite dos meus pensamentos, por uma reflexão que me chegou quando eu beirava a desistência, ou por uma história que me atingiu no momento em que precisava despir a minha pele e vestir a de outrem. 

Procurei responder, algumas vezes, a questão “porque é que eu escrevo?”. Sobretudo depois de ter visto o filme animado “Bailarina”* (ver para entender).

 Não foi simples encontrar essa resposta. Resumia essa sensação confusa de uma necessidade premente de me exprimir com uma frase feita que havia lido algures: “para que não me falte o ar”. Parecia-me bonita, mas ficava-me uma sensação de ter respondido aflorando apenas a superfície da questão. Mas havia uma justificação justa para esse recurso. Eu, que tenho, muitas vezes, dificuldades em me exprimir de forma simples, que falo de emoções mais com olhares e toques do que com palavras, faço-o com muito à vontade se forem em textos escritos e, sobretudo, em páginas secretas de um diário onde ninguém os possa ler, num poema de versos intensos e enigmáticos, ou numa carta que se juntará à minha coleção de “cartas-que-nunca-serão-enviadas”.

Isso poderá ser uma revelação estranha para pessoas que de mim apenas conheçam o meu lado extrovertido: eu fui uma adolescente tímida. Essa mulher desenvolta, carismática e com facilidade de comunicar mesmo em grandes audiências foi forjada em aulas de teatro e práticas outras. Nos anos mais relevantes da minha adolescência fui muito tímida. Evitava estabelecer relações com pessoas novas, resumindo-me ao aconchego da intimidade com aqueles com quem já me sentia confortável, o que se resumia, praticamente, ao meu seio familiar. Nunca fui uma pessoa fácil de conquistar. Tenho camadas e mais camadas, envoltas umas nas outras, como uma cebola ou, numa comparação mais poética, um jogo de bonecas russas, em que cada uma das bonecas que encontras tem algo de diferente da anterior. Há segredos em cada camada e os segredos mais bonitos estão enterrados mais fundo.

Creio que posso dizer que fui esquisita. Ainda sou, mas hoje disfarço bem. Aprendi a misturar-me bem em todos os lugares e, sobretudo, a perceber e amar todas as pessoas, por mais diferentes de mim que estas sejam. Abrindo um parenteses, tenho a dizer que vejo-nos a todos como personagens, inconscientes do destino que nos está traçado, limitados pela nossa própria visão da realidade, mas, simultaneamente, autores da nossa história (que contruímos todos os dias) e influenciadores das histórias daqueles que connosco se cruzem, como coadjuvantes ou figuras adversas sendo, assim, vilões na história de uns e heróis na história de outros. Entender sobre literatura foi para mim, entender sobre a vida. Quando preciso de me autoanalisar, imagino-me numa série e tento perceber que tipo de personagem estou a ser no momento e quem são as personagens à minha volta que estão a ser afetadas pelas minhas ações bem como aquelas cujas ações me afetam. Fechando esse parenteses e voltando a minha infância e adolescência, é preciso que se perceba que, nessa altura, eu era clara e evidentemente, esquisita, estranha, diferente (cada um lhe dê o nome que achar mais conveniente). Não me interessei por jogar ao ringue ou quaisquer outras brincadeiras que não fossem jogos de “faz-de-conta”. Não escolhi um clube de futebol. Não me interessava falar de rapazes, ou com rapazes. Gostava das aulas e esperava com vontade (inconfessa) pelos exames. Foi gorducha na infância e demasiado magra nos primeiros anos da adolescência. Não creio que despertasse a atenção masculina e isso foi, para mim, uma bênção, acredito**. Usava uns óculos de cento de garrafa e não olhava para as pessoas de frente. Em resumo, não me sentia bem com a maior parte das pessoas da minha idade. Gostava de conversar com pessoas mais velhas e de brincar com crianças. As horas mais deliciosas continham estórias: eram aquelas em que a minha avó me contava estórias antigas quando lá ficava quando os meus pais iam trabalhar que, quando escassearam – eu era uma ouvinte voraz – se transformaram em recontos de radionovelas e filmes assistidos no cinema Eden Park (saudade!) ou Tuta; as brincadeiras criativas do meu pai, que chegava do trabalho como um personagem que se desvanecia “desmininguíde” e precisava de beijos para se revitalizar e que, depois de energizado, nos aconchegava com canções ou histórias inventadas na hora (até hoje, por vezes, quando abro um chupa-chupa, deixo o papel suspenso, qual capa a lembrar-me o Sr. Super Chupa-chupa); as leituras da minha mãe, com quem li o meu primeiro livro, “Os cinco na caça ao tesouro”, mais lido por ela do que por mim, muito pequena ainda e, já mais velha, as nossas incursões nas “Selecções do Reader´s Digest”. As conversas dos colegas, recheadas de perguntas e curiosidades pessoais, pareciam-me invasivas e desinteressantes. “Filha, sai, vai passear, faz amigos…”, pedia-me a minha mãe, numa idade em que os pais, geralmente, tentam manter os filhos em casa a força de ameaças e castigos, já que esses, qual enguias escorregadias, estão sempre aptos para a fuga. Tentei. Um dia, comecei a conversar mais longamente com algumas colegas. Tinha quatorze anos. Percebi que nos intervalos entre as aulas, gostavam de ir para o Stoper, um snack-bar lá perto do nosso liceu, ver os rapazes do liceu vizinho. Considerei o esforço do percurso desnecessário. Em uma visita a casa de uma delas, houve uma colega que perguntou-me se eu ainda era virgem. Tinha percebido que algumas já não o eram. Eu nunca tinha beijado, sequer. Lamentei não poder cavar um buraco para me esconder. Também me criticou o hábito de não gostar de partilhar os meus momentos íntimos na casa de banho o que, ao que parece, é um ritual de amizade feminina. Voltei-me a agarrar aos livros.
Os meus amigos eram personagens de livros que, moldados pelas palavras que os construíam, se levantavam, vivos, na minha imaginação. Tive um longo caso de amor com o Frederico Troteville, um rapaz inteligente e carismático, gorducho e dado a mistérios e aventura. Vivi, ao seu lado, doces e excitantes aventuras numa Inglaterra que ia aprendendo a conhecer cada dia melhor, sem nunca ter saído do meu quarto, umas vezes pelas mãos da taletosa Enid Blyton, a minha escritora de eleição desde os meus seis anos de idade, outras nas asas da minha imaginação, onde me fiz personagem e andei de braço dado com esse amor platónico. Confesso que houve um beijo. O Frederico foi um namorado especial, que me apresentou aventuras fantásticas e não me deixou de coração partido. Terminamos numa doce paz de quem guarda as boas memórias no cofre precioso da memória e está pronto para seguir em diante: tinha-me apaixonado por personagens mais intensos e prementes, mais adequados à urgência dos derradeiros anos da adolescência. Aprendi muito com os livros que li. Os livros que mais me ensinaram, não foram os livros técnicos ou escolares, que me ensinaram coisas práticas. Os livros que mais me ensinaram, foram os livros onde havia vida. Onde heróis e vilões me fizeram entender o mundo, as dinâmicas das relações e a alma do universo. Ensinaram-me a pensar e a viver.

Eu acreditava que escrevia para mim, para não me afogar em palavras, para não sucumbir ao silêncio da minha boca que se cala em tantos momentos que (talvez) pediam palavras. No entanto, há poucos dias, numa entrevista para a Rádio Nacional de Cabo Verde sobre a gratidão, tive um momento de revelação. Perguntaram-me por o quê ou a quem eu sou grata. Listava, entusiasmada, coisas que me fazem ser grata, quando me saiu que “sou grata por todos os livros que li e aos autores que os escreveram, bem como a todos as pessoas que foram veículos que me permitiram magia e aprendizagens”. Falei também da minha visão da gratidão como sendo a “memória do coração” e um “estilo de vida” que conduz à felicidade. Percebi que escrevo por causa dessa minha história com os livros, as estórias que me foram contadas e as pessoas que me conduziram e eles. Sinto-me especial por ter tido todas essas oportunidades de me construir, sinto-me grata até por essa “invisibilidade” que me foi conferida pela minha timidez e “não-atratividade” desses anos, que me permitiu um espaço seguro para me conhecer e construir. Sinto, profundamente enraizado em mim, uma doce e grata obrigação emocional de partilha de tudo o que aprendi e vou aprendendo.

Acredito que dois dos bens mais preciosos que nós todos temos e que podemos partilhar com os outros são o nosso tempo (que é toda a vida que temos ao nosso dispor) e as nossas aprendizagens (que é o sumo de toda a vida que já vivemos). Quando me afastei um pouco dos livros e deixei que as pessoas me tocassem, vinha preparada. Hoje sinto-me feliz de perceber que as relações de amizade que contruí são muito sólidas. Sinto-me maravilhada com tantas pessoas especiais que tenho conhecido ao longo da minha trajetória. Os meus melhores amigos, veem-me como uma espécie de personal life coach a quem recorrer para motivação, incentivo e superação de barreiras. Gosto desse papel. Posso discorrer, por horas e mais horas, sobre os mais diversos temas e alargar significativamente uma perceção pessoal reduzida para horizontes alargados. Eu vejo coisas nas pessoas que elas não veem. Todos temos um poder secreto. Esse é o meu.

Escrever é dedicar parte do meu tempo a partilhar esses caminhos e atalhos aprendidos e é uma forma de agradecer. Agradecer é amar. Escrever é, também, uma forma de me despir, de me vulnerabilizar. Isso é um exercício difícil, mas indispensável à construção de relações verdadeiras. Mostrar as nossas vulnerabilidades é doar-se e doar-se é, também, amar. A minha escrita é, portanto, inegavelmente, um ato de amor. Essa foi a minha revelação: eu escrevo para amar os outros. Tenho, neste momento, essa mesma sensação de paz no coração, que sinto quando aconchego alguém que amo no meu peito. Sei que, em algum lugar, alguém que precisa há-de ser tocado por uma frase ou uma ideia neste texto. Procuro escrever de forma a transportar as pessoas para lugares onde se sintam desafiados, inspirados e estimulados. Sempre que recebo uma mensagem sobre a importância de um texto, uma frase ou uma ideia na vida de alguém, rejubilo. Se já sou feliz no instante em que escrevo, sou outra vez feliz nesse momento em que percebo que alguém foi movido pelo que leu daquilo que eu disse (isso para reforçar que o texto pode ser o mesmo mas a leitura é pessoal e intransmissível como uma impressão digital, já que se relaciona com as nossas crenças, visões e expetativas do mundo).

Essa vontade de amar de coração escancarado é a motivação por detrás da criação do blog “Verbum Tactus”, que veio trazer um espaço para partilha de textos e ideias. Os leitores mais atentos terão, acredito, tido a curiosidade de procurar o significado dessa expressão, em latim, que escolhi para dar nome a esta nossa plataforma de diálogo. Tiveram? Se não, este é um bom momento para refletir sobre. Deixo uma pista, em jeito de convite: leiam o "Mote" (carregar na palavra sublinhada para abrir a página) do Verbum Tactus. Este pequeno texto que fala, poeticamente, dessa missão de amor e gratidão, como “O toque do sinal dado pelo verbo que chama para a ação, qual cornetas ou clarins de um regimento  (toque de alvorada, toque de recolher, toque para pensar, toque para sentir, toque para agir).”



Com amor,



* Ballerina (BailarinaPOR ou A BailarinaBRA) é um filme de animação franco-canadiano dos géneros aventura e comédia musical, realizado e escrito por Éric Summer, Éric Warin, Carol Noble e Laurent Zeitoun, com a banda sonora composta por Klaus Badelt e as vozes interpretadas por Camille Cottin, Malik Bentalha, Kaycie Chase e Magali Barney.

** Raciocínio e desenvolver futuramente.