Ela deitou-se, fechou a porta e a alma. Não sem antes, e apesar de que o sol já havia nascido, se vestir como se fosse ao polo norte. O inverno da alma também gela o corpo. Colocou um cachecol, um gorro, uma camisa e um casaco, um calção, umas calças de fato treino forradas e completou com um par de meias. E ainda assim, tinha frio. Tinha-se apercebido de que haviam letras que, conjugadas em determinadas frases, eram como o inverno. Também percebeu que há mensagens escritas que são como gritos. Ela nunca gostara de gritos. Também percebera que discussões por texto não acabavam em abraços. E ela vivia de abraços.
Já
te aconteceu teres a cabeça tão cheia de ruído que os teus ouvidos ficam surdos
à razão? Sentes, com toda a força, que qualquer palavra a mais te poderia
trasbordar. Queres tapar os ouvidos para não as ouvir. Queres furar os olhos
para não as poder ler. Queres falar, mas não consegues. Queres dizer que não,
que não é assim. Não, não é isso que pensas. Não, não é isso que disseste. Não,
não é isso que queres. Sobretudo, não, não é isso que sinto. Sentir é um ato
tão privado. Tão teu. E atrevem-se a dizer-te o que sentes. Queres pedir que te
oiçam a alma. As verdades naquilo que dizes. As respostas não condizem com as
tuas perguntas. Às tuas inquietações, fazem eco inquietações simétricas.
Acusação por acusação. Inquietação por inquietação. Medo por medo. O que fazer?
Repetes ou silencias-te?
Ela apercebe-se que há silêncios que são
algemas. Como se pode falar quando os pensamentos estão meio a ferver, meio
congelados? Senta-se no chão, tapa os
ouvidos e pede que parem. Que os pensamentos em carroceis de luzes vertiginosas
abrandem. Precisa parar um momento.
Disparam-te
palavras acusatórias. Sentes-te tonto e enjoado. Apetece-te uma pausa.
Dormir. Mas ela já havia dormido todo o
tempo que o seu corpo aguenta. Tapa a cabeça e pede que pare. Por Deus, que
pare. Decorrem horas e eles estão ali. Prendendo-lhe os braços e as pernas,
estrangulando a sua respiração, estão as acusações injustas, as palavras que
substituíram a verdade, a pintura distorcida das suas intenções na boca dos
outros. Fraca, desnutrida dos abraços que estão já em memórias distantes,
estranha em sua própria casa, esconde-se sozinha. Mas o barulho é demasiado
intenso. Ensurdecedor. Os seus pensamentos gritam, chiam, ladram. E mordem.
Precisas
de mais espaço a tua volta, para não sufocares. Precisas do barulho de gente, para
não ouvires os teus pensamentos. Ecos. São ecos. Os pensamentos não são os
teus. Precisas de novos olhos, que afastem esses rótulos. Que te reafirmem, que
te digam, que não são teus. Tens medo de acreditar. Queres ver gente. Esperas o
tempo de dois cigarros que qualquer coisa aconteça. O que esperas? Um olhar que
te entenda? Não, já acreditas que esse não há-de chegar. Só tu consegues ver. A
tua voz está silenciada no teu corpo desde que te mandaram calar. Não podes
dizer. Vai passar.
Era para serem dois, mas ela esperou um
pouco mais. Esperou o tempo de três cigarros e uma semi-desistência. Já se
tinha dito que não se poria com essas coisas, mas as vezes só conseguia calar momentaneamente
o barulho e fingir estar presente, iludindo os seus demónios, sempre em
movimento, enquanto estes a espreitam, pelos poros da noite. O esforço para viver
de verdade está, nesses momentos, fora do seu alcance. “Vai passar”, pensa. “Vai
passar”, pede. À Deus? Tem os olhos postos nas estrelas (é, ainda, uma
sonhadora). O coração vai embrulhado no estômago. A alma está em estado de
reclusão. Fecha os olhos. “Permita que passe, por favor”, pede novamente. Às
forças do Universo? Repete os seus mantras, enraíza-se no presente e procura
calar as angústias. Passou. Mas e se voltar?
E
tens que aprender que ela há sempre de voltar. Sempre que, no mesmo prato,
servires doses desiguais de esperança e medo. A esperança deveria cobrir o
medo. Mas, por vezes, desaprendemos a arte de preparar o prato e lançamos o
medo para cima da esperança, como quem serve o feijão por baixo e o cobre de
arroz. A esperança é o fogo que ateia a ansia de viver. O medo é um elefante
pesadamente sentado na tua vontade. Notas que ainda te sabes servir: o medo por
baixo, em dose de dieta e a esperança por cima, em dose abundante, e percebes
que precisas dizer.
Ela diz-se que quase duas semanas de
silêncio foram demasiadas. Espanta-se com a forma como está desnutrida. Procura
na sua gaveta de habilidades e percebe que tem perdido algumas. Não do dia para
a noite, mas aos poucos, sem que notasse. Nada se perde do dia para a noite.
Tudo é uma sucessão de pequenas escolhas. A capacidade de decidir esquecida
entre angústias, a capacidade de encontrar soluções perdida entre tentativas
frustradas. Percebe, no entanto que a mordaça na sua alma fora por ela lá
colocada.
A
conversa está a distância das tuas palavras e queres dizer. Acreditas que vai
ser desta. “Mas e se não for?”, ouves. Sim, também está lá o medo, fazendo
sombra à esperança que trazes no peito. Mas queres saber. Queres muito saber. “Perguntas
ou calas-te?”
Sentam-se frente a frente. Ao ar livre,
pede ela, com medo de sufocar e não poder falar. Cobre-se, mas não demasiado. O
frio mantem-na atenta. Testa a temperatura da água: gelada. Quer-se despir e
percebe que se despe sozinha. Tira uma peça, os olhos fincam-se na sua alma
desnuda. Um monólogo em striptease que
ecoa no silêncio cheio de pudor da outra parte. “Nada tenho a dizer”. Nem a
entender, é o que subentende.
Ela traz as suas vergonhas e os seus
medos, todos embrulhados em silêncio. Ferem. Traz também questões, que queimam.
Não se quer despir e quedar-se assim, nua, qual um quadro de um pintor
incompreendido sob o escrutínio de um crítico demasiado ciente do seu papel.
Ela queria era uma dança de almas nuas e um abraço intimo e eterno. Mas vinha
ferida já. Quanta pele da sua alma se atrevia ainda a mostrar? Apetece-lhe um
colo para chorar as dores que lhe calcam a alma mas faz-se de forte. Não que
não o fosse, mas já não o consegue sentir. Está cansada. Precisa, antes de se
despir, saber que é ali o lar. Que o espaço é seguro. Que a porta não será
deixada aberta, para que os seus demónios a visitem a noite, quando estiver
indefesa. Quer saber que pode dormir. Que não precisará, amanhã, partir. Que
ali cabem os seus braços, de dedos demasiado longos, as suas ancas, os seus
cabelos, os seus sonhos, demasiado grandes e a sua vontade, demasiado premente.
Já
conheces essa dança, mas tentas um movimento diferente e pedes, em silêncio, que
no final, haja encontro. Mas já não sabes pedir. As perguntas trazem-te as
respostas de sempre. Era o que esperavas ouvir mas a dor é, a mesma, virgem. Ninguém
se despiu contigo e tu não te despiste o suficiente. A coragem não te chegou
completamente. Duas almas que antes se aconchegavam, nuas, dormiam agora vestidas,
em camas separadas. Dói. Ao frio, relembrar um abraço dói. No limiar da
possibilidade de um voo, querias que fosse desta. Mas houve palavras malvadas
que cutucaram os teus medos, que se agarraram às tuas entranhas, a beira do
salto. Ficaste em terra.
Ela retira-se, de alma vencida. Leva um
reino ruído e um cavalo murcho. Na memória, mais palavras para voltar a ouvir
nas suas noites de silêncio e nos seus dias sem sol. Leva consigo outros filhos
da noite, que calcam a fé. Uma noite insone, uma manhã que se transforma em
noite e de novo uma tentativa de esquecimento, mais horas do que o devido, nos
braços de Morfeu.
A
vida para, mas a luta continua. Tens que perceber que, seja qual for o estado
de conservação da tua alma, precisas ir lá fora e sorrir. Precisas ir lá fora e
brilhar. Porque pessoas que têm dores são esquecidas. Os que não se levantam
são sepultados. Sais. Já és boa nisso. Tens tido muitas oportunidades para o
treinar. A tua voz quase soa normal. Ninguém nota que o teu mundo te desaba por
dentro. Lá fora, entre poemas e fonemas, parece que há uma porta que se abre. Percebes
que há algo em ti que ainda não foi vencido. Tentas. Ainda não lhe sabes dizer
que não. Que mal fará ouvir? Ou responder? Acreditas que, em algum lugar,
estará escondida uma palavra que faça diferença para ser dita ou ouvida ou um
silêncio que traga paz. Falas. Trazes respostas de uma descobardada
sinceridade. Se é suposto que estejas em casa, precisas dizer que és tu.
Precisas poder mostrar e curar as tuas feridas. Precisas gritar as tuas
verdades. Tentas.
Nesse dia, ela aprende uma importante
lição: se há silêncios que são algemas há, também, conversas que são armadilha.
Nessa, perguntas não nos são feitas para se procurar entender e as palavras da
direita procuram atingir fins à esquerda. Não há uma hora de falar e uma hora
de calar. Cada um grita, sem tino, as suas verdades, ou mentiras, conforme a
escolha. Numa teia de desentendimento, cada movimento a leva mais próximo da sua
perdição.
Há
ouvidos que são de pedra. As nossa dores batem e refletem. Nós, inconscientes
da falta de vontade de entender, de coisas maiores mais importantes do que nós,
já enraizadas no outro, repetimos, citamo-nos, exemplificamos. O entendimento
não acontece. “Espera! Não foi isso que disse!”, dizes, e não te ouvem. “Espera,
não é isso que sinto!”, pedes, e não te entendem. Então, há vazios que se colam
a tua alma, marcando-a a ferro. Pensas que precisas aprender a não te despir
assim. A tua alma gela, ao frio e questionas-te sobre a importância da verdade.
A cada vez que o coração é magoado, as feridas são mais profundas. Sentes que
há dedos que mexem onde ainda nem sequer havia sarado. Trazes o coração esfolado
e um coração esfolado, senhores, é uma tragédia.
Ela olha para cima, do fundo do poço e
procura as reentrâncias que sabe que lá estarão. Já fez essa escalada antes,
mas o caminho era diferente. Enquanto procura a saída, entende que todas as
tragédias começam em conto de fada. O inferno pode ser já aqui ao lado, num dia
comum, pela ausência do paraíso vivido ou sonhado. A perda do que se constrói é
uma perda visível, mas recuperável. A perda dos sonhos é uma tragédia da vida.