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quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

ESCREVER COMO QUEM AMA


Há dias em que lemos frases que nos salvam. Eu fui salva, várias vezes, por um poema que se infiltrou na noite dos meus pensamentos, por uma reflexão que me chegou quando eu beirava a desistência, ou por uma história que me atingiu no momento em que precisava despir a minha pele e vestir a de outrem. 

Procurei responder, algumas vezes, a questão “porque é que eu escrevo?”. Sobretudo depois de ter visto o filme animado “Bailarina”* (ver para entender).

 Não foi simples encontrar essa resposta. Resumia essa sensação confusa de uma necessidade premente de me exprimir com uma frase feita que havia lido algures: “para que não me falte o ar”. Parecia-me bonita, mas ficava-me uma sensação de ter respondido aflorando apenas a superfície da questão. Mas havia uma justificação justa para esse recurso. Eu, que tenho, muitas vezes, dificuldades em me exprimir de forma simples, que falo de emoções mais com olhares e toques do que com palavras, faço-o com muito à vontade se forem em textos escritos e, sobretudo, em páginas secretas de um diário onde ninguém os possa ler, num poema de versos intensos e enigmáticos, ou numa carta que se juntará à minha coleção de “cartas-que-nunca-serão-enviadas”.

Isso poderá ser uma revelação estranha para pessoas que de mim apenas conheçam o meu lado extrovertido: eu fui uma adolescente tímida. Essa mulher desenvolta, carismática e com facilidade de comunicar mesmo em grandes audiências foi forjada em aulas de teatro e práticas outras. Nos anos mais relevantes da minha adolescência fui muito tímida. Evitava estabelecer relações com pessoas novas, resumindo-me ao aconchego da intimidade com aqueles com quem já me sentia confortável, o que se resumia, praticamente, ao meu seio familiar. Nunca fui uma pessoa fácil de conquistar. Tenho camadas e mais camadas, envoltas umas nas outras, como uma cebola ou, numa comparação mais poética, um jogo de bonecas russas, em que cada uma das bonecas que encontras tem algo de diferente da anterior. Há segredos em cada camada e os segredos mais bonitos estão enterrados mais fundo.

Creio que posso dizer que fui esquisita. Ainda sou, mas hoje disfarço bem. Aprendi a misturar-me bem em todos os lugares e, sobretudo, a perceber e amar todas as pessoas, por mais diferentes de mim que estas sejam. Abrindo um parenteses, tenho a dizer que vejo-nos a todos como personagens, inconscientes do destino que nos está traçado, limitados pela nossa própria visão da realidade, mas, simultaneamente, autores da nossa história (que contruímos todos os dias) e influenciadores das histórias daqueles que connosco se cruzem, como coadjuvantes ou figuras adversas sendo, assim, vilões na história de uns e heróis na história de outros. Entender sobre literatura foi para mim, entender sobre a vida. Quando preciso de me autoanalisar, imagino-me numa série e tento perceber que tipo de personagem estou a ser no momento e quem são as personagens à minha volta que estão a ser afetadas pelas minhas ações bem como aquelas cujas ações me afetam. Fechando esse parenteses e voltando a minha infância e adolescência, é preciso que se perceba que, nessa altura, eu era clara e evidentemente, esquisita, estranha, diferente (cada um lhe dê o nome que achar mais conveniente). Não me interessei por jogar ao ringue ou quaisquer outras brincadeiras que não fossem jogos de “faz-de-conta”. Não escolhi um clube de futebol. Não me interessava falar de rapazes, ou com rapazes. Gostava das aulas e esperava com vontade (inconfessa) pelos exames. Foi gorducha na infância e demasiado magra nos primeiros anos da adolescência. Não creio que despertasse a atenção masculina e isso foi, para mim, uma bênção, acredito**. Usava uns óculos de cento de garrafa e não olhava para as pessoas de frente. Em resumo, não me sentia bem com a maior parte das pessoas da minha idade. Gostava de conversar com pessoas mais velhas e de brincar com crianças. As horas mais deliciosas continham estórias: eram aquelas em que a minha avó me contava estórias antigas quando lá ficava quando os meus pais iam trabalhar que, quando escassearam – eu era uma ouvinte voraz – se transformaram em recontos de radionovelas e filmes assistidos no cinema Eden Park (saudade!) ou Tuta; as brincadeiras criativas do meu pai, que chegava do trabalho como um personagem que se desvanecia “desmininguíde” e precisava de beijos para se revitalizar e que, depois de energizado, nos aconchegava com canções ou histórias inventadas na hora (até hoje, por vezes, quando abro um chupa-chupa, deixo o papel suspenso, qual capa a lembrar-me o Sr. Super Chupa-chupa); as leituras da minha mãe, com quem li o meu primeiro livro, “Os cinco na caça ao tesouro”, mais lido por ela do que por mim, muito pequena ainda e, já mais velha, as nossas incursões nas “Selecções do Reader´s Digest”. As conversas dos colegas, recheadas de perguntas e curiosidades pessoais, pareciam-me invasivas e desinteressantes. “Filha, sai, vai passear, faz amigos…”, pedia-me a minha mãe, numa idade em que os pais, geralmente, tentam manter os filhos em casa a força de ameaças e castigos, já que esses, qual enguias escorregadias, estão sempre aptos para a fuga. Tentei. Um dia, comecei a conversar mais longamente com algumas colegas. Tinha quatorze anos. Percebi que nos intervalos entre as aulas, gostavam de ir para o Stoper, um snack-bar lá perto do nosso liceu, ver os rapazes do liceu vizinho. Considerei o esforço do percurso desnecessário. Em uma visita a casa de uma delas, houve uma colega que perguntou-me se eu ainda era virgem. Tinha percebido que algumas já não o eram. Eu nunca tinha beijado, sequer. Lamentei não poder cavar um buraco para me esconder. Também me criticou o hábito de não gostar de partilhar os meus momentos íntimos na casa de banho o que, ao que parece, é um ritual de amizade feminina. Voltei-me a agarrar aos livros.
Os meus amigos eram personagens de livros que, moldados pelas palavras que os construíam, se levantavam, vivos, na minha imaginação. Tive um longo caso de amor com o Frederico Troteville, um rapaz inteligente e carismático, gorducho e dado a mistérios e aventura. Vivi, ao seu lado, doces e excitantes aventuras numa Inglaterra que ia aprendendo a conhecer cada dia melhor, sem nunca ter saído do meu quarto, umas vezes pelas mãos da taletosa Enid Blyton, a minha escritora de eleição desde os meus seis anos de idade, outras nas asas da minha imaginação, onde me fiz personagem e andei de braço dado com esse amor platónico. Confesso que houve um beijo. O Frederico foi um namorado especial, que me apresentou aventuras fantásticas e não me deixou de coração partido. Terminamos numa doce paz de quem guarda as boas memórias no cofre precioso da memória e está pronto para seguir em diante: tinha-me apaixonado por personagens mais intensos e prementes, mais adequados à urgência dos derradeiros anos da adolescência. Aprendi muito com os livros que li. Os livros que mais me ensinaram, não foram os livros técnicos ou escolares, que me ensinaram coisas práticas. Os livros que mais me ensinaram, foram os livros onde havia vida. Onde heróis e vilões me fizeram entender o mundo, as dinâmicas das relações e a alma do universo. Ensinaram-me a pensar e a viver.

Eu acreditava que escrevia para mim, para não me afogar em palavras, para não sucumbir ao silêncio da minha boca que se cala em tantos momentos que (talvez) pediam palavras. No entanto, há poucos dias, numa entrevista para a Rádio Nacional de Cabo Verde sobre a gratidão, tive um momento de revelação. Perguntaram-me por o quê ou a quem eu sou grata. Listava, entusiasmada, coisas que me fazem ser grata, quando me saiu que “sou grata por todos os livros que li e aos autores que os escreveram, bem como a todos as pessoas que foram veículos que me permitiram magia e aprendizagens”. Falei também da minha visão da gratidão como sendo a “memória do coração” e um “estilo de vida” que conduz à felicidade. Percebi que escrevo por causa dessa minha história com os livros, as estórias que me foram contadas e as pessoas que me conduziram e eles. Sinto-me especial por ter tido todas essas oportunidades de me construir, sinto-me grata até por essa “invisibilidade” que me foi conferida pela minha timidez e “não-atratividade” desses anos, que me permitiu um espaço seguro para me conhecer e construir. Sinto, profundamente enraizado em mim, uma doce e grata obrigação emocional de partilha de tudo o que aprendi e vou aprendendo.

Acredito que dois dos bens mais preciosos que nós todos temos e que podemos partilhar com os outros são o nosso tempo (que é toda a vida que temos ao nosso dispor) e as nossas aprendizagens (que é o sumo de toda a vida que já vivemos). Quando me afastei um pouco dos livros e deixei que as pessoas me tocassem, vinha preparada. Hoje sinto-me feliz de perceber que as relações de amizade que contruí são muito sólidas. Sinto-me maravilhada com tantas pessoas especiais que tenho conhecido ao longo da minha trajetória. Os meus melhores amigos, veem-me como uma espécie de personal life coach a quem recorrer para motivação, incentivo e superação de barreiras. Gosto desse papel. Posso discorrer, por horas e mais horas, sobre os mais diversos temas e alargar significativamente uma perceção pessoal reduzida para horizontes alargados. Eu vejo coisas nas pessoas que elas não veem. Todos temos um poder secreto. Esse é o meu.

Escrever é dedicar parte do meu tempo a partilhar esses caminhos e atalhos aprendidos e é uma forma de agradecer. Agradecer é amar. Escrever é, também, uma forma de me despir, de me vulnerabilizar. Isso é um exercício difícil, mas indispensável à construção de relações verdadeiras. Mostrar as nossas vulnerabilidades é doar-se e doar-se é, também, amar. A minha escrita é, portanto, inegavelmente, um ato de amor. Essa foi a minha revelação: eu escrevo para amar os outros. Tenho, neste momento, essa mesma sensação de paz no coração, que sinto quando aconchego alguém que amo no meu peito. Sei que, em algum lugar, alguém que precisa há-de ser tocado por uma frase ou uma ideia neste texto. Procuro escrever de forma a transportar as pessoas para lugares onde se sintam desafiados, inspirados e estimulados. Sempre que recebo uma mensagem sobre a importância de um texto, uma frase ou uma ideia na vida de alguém, rejubilo. Se já sou feliz no instante em que escrevo, sou outra vez feliz nesse momento em que percebo que alguém foi movido pelo que leu daquilo que eu disse (isso para reforçar que o texto pode ser o mesmo mas a leitura é pessoal e intransmissível como uma impressão digital, já que se relaciona com as nossas crenças, visões e expetativas do mundo).

Essa vontade de amar de coração escancarado é a motivação por detrás da criação do blog “Verbum Tactus”, que veio trazer um espaço para partilha de textos e ideias. Os leitores mais atentos terão, acredito, tido a curiosidade de procurar o significado dessa expressão, em latim, que escolhi para dar nome a esta nossa plataforma de diálogo. Tiveram? Se não, este é um bom momento para refletir sobre. Deixo uma pista, em jeito de convite: leiam o "Mote" (carregar na palavra sublinhada para abrir a página) do Verbum Tactus. Este pequeno texto que fala, poeticamente, dessa missão de amor e gratidão, como “O toque do sinal dado pelo verbo que chama para a ação, qual cornetas ou clarins de um regimento  (toque de alvorada, toque de recolher, toque para pensar, toque para sentir, toque para agir).”



Com amor,



* Ballerina (BailarinaPOR ou A BailarinaBRA) é um filme de animação franco-canadiano dos géneros aventura e comédia musical, realizado e escrito por Éric Summer, Éric Warin, Carol Noble e Laurent Zeitoun, com a banda sonora composta por Klaus Badelt e as vozes interpretadas por Camille Cottin, Malik Bentalha, Kaycie Chase e Magali Barney.

** Raciocínio e desenvolver futuramente.




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