Há dias em que lemos
frases que nos salvam. Eu fui salva, várias vezes, por um poema que se
infiltrou na noite dos meus pensamentos, por uma reflexão que me chegou quando
eu beirava a desistência, ou por uma história que me atingiu no momento em que
precisava despir a minha pele e vestir a de outrem.
Procurei responder,
algumas vezes, a questão “porque é que eu escrevo?”. Sobretudo depois de ter
visto o filme animado “Bailarina”*
(ver para entender).
Não foi simples encontrar essa resposta.
Resumia essa sensação confusa de uma necessidade premente de me exprimir com
uma frase feita que havia lido algures: “para que não me falte o ar”. Parecia-me
bonita, mas ficava-me uma sensação de ter respondido aflorando apenas a superfície
da questão. Mas havia uma justificação justa para esse recurso. Eu, que tenho,
muitas vezes, dificuldades em me exprimir de forma simples, que falo de emoções
mais com olhares e toques do que com palavras, faço-o com muito à vontade se
forem em textos escritos e, sobretudo, em páginas secretas de um diário onde
ninguém os possa ler, num poema de versos intensos e enigmáticos, ou numa carta
que se juntará à minha coleção de “cartas-que-nunca-serão-enviadas”.
Isso poderá ser uma
revelação estranha para pessoas que de mim apenas conheçam o meu lado
extrovertido: eu fui uma adolescente tímida. Essa mulher desenvolta,
carismática e com facilidade de comunicar mesmo em grandes audiências foi
forjada em aulas de teatro e práticas outras. Nos anos mais relevantes da minha
adolescência fui muito tímida. Evitava estabelecer relações com pessoas novas,
resumindo-me ao aconchego da intimidade com aqueles com quem já me sentia
confortável, o que se resumia, praticamente, ao meu seio familiar. Nunca fui
uma pessoa fácil de conquistar. Tenho camadas e mais camadas, envoltas umas nas
outras, como uma cebola ou, numa comparação mais poética, um jogo de bonecas
russas, em que cada uma das bonecas que encontras tem algo de diferente da
anterior. Há segredos em cada camada e os segredos mais bonitos estão
enterrados mais fundo.
Creio que posso dizer que fui esquisita. Ainda sou, mas hoje disfarço bem.
Aprendi a misturar-me bem em todos os lugares e, sobretudo, a perceber e amar
todas as pessoas, por mais diferentes de mim que estas sejam. Abrindo um
parenteses, tenho a dizer que vejo-nos a todos como personagens, inconscientes
do destino que nos está traçado, limitados pela nossa própria visão da
realidade, mas, simultaneamente, autores da nossa história (que contruímos todos
os dias) e influenciadores das histórias daqueles que connosco se cruzem, como
coadjuvantes ou figuras adversas sendo, assim, vilões na história de uns e
heróis na história de outros. Entender sobre literatura foi para mim, entender
sobre a vida. Quando preciso de me autoanalisar, imagino-me numa série e tento
perceber que tipo de personagem estou a ser no momento e quem são as
personagens à minha volta que estão a ser afetadas pelas minhas ações bem como
aquelas cujas ações me afetam. Fechando esse parenteses e voltando a minha
infância e adolescência, é preciso que se perceba que, nessa altura, eu era
clara e evidentemente, esquisita, estranha, diferente (cada um lhe dê o nome
que achar mais conveniente). Não me interessei por jogar ao ringue ou quaisquer
outras brincadeiras que não fossem jogos de “faz-de-conta”. Não escolhi um
clube de futebol. Não me interessava falar de rapazes, ou com rapazes. Gostava
das aulas e esperava com vontade (inconfessa) pelos exames. Foi gorducha na
infância e demasiado magra nos primeiros anos da adolescência. Não creio que
despertasse a atenção masculina e isso foi, para mim, uma bênção, acredito**. Usava
uns óculos de cento de garrafa e não olhava para as pessoas de frente. Em
resumo, não me sentia bem com a maior parte das pessoas da minha idade. Gostava
de conversar com pessoas mais velhas e de brincar com crianças. As horas mais
deliciosas continham estórias: eram aquelas em que a minha avó me contava
estórias antigas quando lá ficava quando os meus pais iam trabalhar que, quando
escassearam – eu era uma ouvinte voraz – se transformaram em recontos de
radionovelas e filmes assistidos no cinema Eden Park (saudade!) ou Tuta; as
brincadeiras criativas do meu pai, que chegava do trabalho como um personagem
que se desvanecia “desmininguíde” e precisava de beijos para se revitalizar e
que, depois de energizado, nos aconchegava com canções ou histórias inventadas
na hora (até hoje, por vezes, quando abro um chupa-chupa, deixo o papel
suspenso, qual capa a lembrar-me o Sr. Super Chupa-chupa); as leituras da minha
mãe, com quem li o meu primeiro livro, “Os cinco na caça ao tesouro”, mais lido
por ela do que por mim, muito pequena ainda e, já mais velha, as nossas
incursões nas “Selecções do Reader´s Digest”. As conversas dos colegas,
recheadas de perguntas e curiosidades pessoais, pareciam-me invasivas e
desinteressantes. “Filha, sai, vai passear, faz amigos…”, pedia-me a minha mãe,
numa idade em que os pais, geralmente, tentam manter os filhos em casa a força
de ameaças e castigos, já que esses, qual enguias escorregadias, estão sempre
aptos para a fuga. Tentei. Um dia, comecei a conversar mais longamente com
algumas colegas. Tinha quatorze anos. Percebi que nos intervalos entre as
aulas, gostavam de ir para o Stoper, um snack-bar lá perto do nosso liceu, ver
os rapazes do liceu vizinho. Considerei o esforço do percurso desnecessário. Em
uma visita a casa de uma delas, houve uma colega que perguntou-me se eu ainda
era virgem. Tinha percebido que algumas já não o eram. Eu nunca tinha beijado,
sequer. Lamentei não poder cavar um buraco para me esconder. Também me criticou
o hábito de não gostar de partilhar os meus momentos íntimos na casa de banho o
que, ao que parece, é um ritual de amizade feminina. Voltei-me a agarrar aos
livros.
Os meus amigos eram
personagens de livros que, moldados pelas palavras que os construíam, se
levantavam, vivos, na minha imaginação. Tive um longo caso de amor com o
Frederico Troteville, um rapaz inteligente e carismático, gorducho e dado a
mistérios e aventura. Vivi, ao seu lado, doces e excitantes aventuras numa
Inglaterra que ia aprendendo a conhecer cada dia melhor, sem nunca ter saído do
meu quarto, umas vezes pelas mãos da taletosa Enid Blyton, a minha escritora de
eleição desde os meus seis anos de idade, outras nas asas da minha imaginação,
onde me fiz personagem e andei de braço dado com esse amor platónico. Confesso
que houve um beijo. O Frederico foi um namorado especial, que me apresentou
aventuras fantásticas e não me deixou de coração partido. Terminamos numa doce
paz de quem guarda as boas memórias no cofre precioso da memória e está pronto
para seguir em diante: tinha-me apaixonado por personagens mais intensos e
prementes, mais adequados à urgência dos derradeiros anos da adolescência. Aprendi
muito com os livros que li. Os livros que mais me ensinaram, não foram os
livros técnicos ou escolares, que me ensinaram coisas práticas. Os livros que
mais me ensinaram, foram os livros onde havia vida. Onde heróis e vilões me fizeram
entender o mundo, as dinâmicas das relações e a alma do universo. Ensinaram-me
a pensar e a viver.
Eu acreditava que
escrevia para mim, para não me afogar em palavras, para não sucumbir ao
silêncio da minha boca que se cala em tantos momentos que (talvez) pediam
palavras. No entanto, há poucos dias, numa entrevista para a Rádio Nacional de
Cabo Verde sobre a gratidão, tive um momento de revelação. Perguntaram-me por o
quê ou a quem eu sou grata. Listava, entusiasmada, coisas que me fazem ser
grata, quando me saiu que “sou grata por todos os livros que li e aos autores
que os escreveram, bem como a todos as pessoas que foram veículos que me
permitiram magia e aprendizagens”. Falei também da minha visão da gratidão como
sendo a “memória do coração” e um “estilo de vida” que conduz à felicidade. Percebi
que escrevo por causa dessa minha história com os livros, as estórias que me
foram contadas e as pessoas que me conduziram e eles. Sinto-me especial por ter
tido todas essas oportunidades de me construir, sinto-me grata até por essa “invisibilidade”
que me foi conferida pela minha timidez e “não-atratividade” desses anos, que
me permitiu um espaço seguro para me conhecer e construir. Sinto, profundamente
enraizado em mim, uma doce e grata obrigação emocional de partilha de tudo o
que aprendi e vou aprendendo.
Acredito que dois dos
bens mais preciosos que nós todos temos e que podemos partilhar com os outros
são o nosso tempo (que é toda a vida que temos ao nosso dispor) e as nossas
aprendizagens (que é o sumo de toda a vida que já vivemos). Quando me afastei
um pouco dos livros e deixei que as pessoas me tocassem, vinha preparada. Hoje
sinto-me feliz de perceber que as relações de amizade que contruí são muito
sólidas. Sinto-me maravilhada com tantas pessoas especiais que tenho conhecido
ao longo da minha trajetória. Os meus melhores amigos, veem-me como uma espécie
de personal life coach a quem
recorrer para motivação, incentivo e superação de barreiras. Gosto desse papel.
Posso discorrer, por horas e mais horas, sobre os mais diversos temas e alargar
significativamente uma perceção pessoal reduzida para horizontes alargados. Eu
vejo coisas nas pessoas que elas não veem. Todos temos um poder secreto. Esse é
o meu.
Escrever é dedicar
parte do meu tempo a partilhar esses caminhos e atalhos aprendidos e é uma
forma de agradecer. Agradecer é amar. Escrever é, também, uma forma de me
despir, de me vulnerabilizar. Isso é um exercício difícil, mas indispensável à
construção de relações verdadeiras. Mostrar as nossas vulnerabilidades é
doar-se e doar-se é, também, amar. A minha escrita é, portanto, inegavelmente,
um ato de amor. Essa foi a minha revelação: eu escrevo para amar os outros.
Tenho, neste momento, essa mesma sensação de paz no coração, que sinto quando
aconchego alguém que amo no meu peito. Sei que, em algum lugar, alguém que
precisa há-de ser tocado por uma frase ou uma ideia neste texto. Procuro
escrever de forma a transportar as pessoas para lugares onde se sintam
desafiados, inspirados e estimulados. Sempre que recebo uma mensagem sobre
a importância de um texto, uma frase ou uma ideia na vida de alguém, rejubilo. Se
já sou feliz no instante em que escrevo, sou outra vez feliz nesse momento em
que percebo que alguém foi movido pelo que leu daquilo que eu disse (isso para
reforçar que o texto pode ser o mesmo mas a leitura é pessoal e intransmissível
como uma impressão digital, já que se relaciona com as nossas crenças, visões e
expetativas do mundo).
Essa vontade de amar
de coração escancarado é a motivação por detrás da criação do blog “Verbum Tactus”, que veio trazer um
espaço para partilha de textos e ideias. Os leitores mais atentos terão,
acredito, tido a curiosidade de procurar o significado dessa expressão, em
latim, que escolhi para dar nome a esta nossa plataforma de diálogo. Tiveram?
Se não, este é um bom momento para refletir sobre. Deixo uma pista, em jeito de
convite: leiam o "Mote" (carregar na palavra sublinhada para abrir a página) do Verbum Tactus. Este pequeno texto que
fala, poeticamente, dessa missão de amor e gratidão, como “O toque do sinal dado pelo verbo que
chama para a ação, qual cornetas ou clarins de um regimento
(toque de alvorada, toque de recolher,
toque para pensar, toque para sentir, toque para agir).”
Com amor,
* Ballerina (BailarinaPOR ou A
BailarinaBRA) é um filme de animação franco-canadiano dos géneros aventura e comédia
musical, realizado e escrito por Éric Summer, Éric Warin, Carol Noble e Laurent
Zeitoun, com a banda sonora composta por Klaus Badelt e
as vozes interpretadas por Camille Cottin, Malik Bentalha, Kaycie Chase e
Magali Barney.
** Raciocínio e
desenvolver futuramente.
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