Palavras aconchegam, consolam, acarinham, ensinam, inspiram, motivam, mas também esfolam a alma, rasgam-na em mil pedaços, geram traumas, se materializam nos piores pesadelos que sonhamos acordados. Amo e temo as palavras em medidas quase iguais. É preciso amá-las mas também respeitá-las, em quase reverência.
O toque do sinal dado pelo verbo que chama para a ação, qual cornetas ou clarins de um regimento (toque para pensar, toque para sentir, toque para agir), com Janice da Graça.
quinta-feira, 29 de março de 2018
Palavras
segunda-feira, 26 de março de 2018
IDEIAS OUSADAS
E se eu
apagasse o meu facebook?
E se não tivesse telemóvel, nem visse televisão?
E se me sentasse, sozinh@, numa mesa de café, com um livro, ou um pedaço de papel?
E se fosse sem companhia ao cinema, ou de braços dados, olhar as estrelas?
E se ficasse junto, mas em silêncio?
E não falasse dos outros, mas só de coisas que me fazem luzir os olhos?
E se amanhã
saísse à rua e abraçasse todas as pessoas que encontrasse?
E se
voltasse a falar com todas as pessoas que, por algum motivo, se perderam no
tempo?
E se
dissesse tudo aquilo que calei?
E se me
abrisse, se me escancarasse ao novo, ao diferente?
E se quando
e onde a música tocar, eu me despisse da vergonha e dançasse?
E se não me
importar com dinheiro, promoções, posições?
E se (assusto-me
com a minha ousadia) deixasse de ser doutor(a) e ganhasse a vida como bem
calhar?
E se fosse
num cabaré? E se me apetecesse fazer streaptease? Do corpo ou da alma?
E se amar fosse
o mais importante?
E se me
atrevesse a amar, de verdade, a entregar todos os pontos nos “Is”, cruzar todos
os “Ts”, resolver todas as equações na ordem da “variável coração”?
E se esse
meu amor fosse azul, ou amarelo, mais alto, mais novo, mais velho? Mais pobre,
mais feio, mais belo? Como eu, no corpo ou na alma, ou, de todo, diferente?
E se, e se…
e se eu dissesse que amo e deixasse de jogar ao jogo de quem menos se importa?
E se me atrevesse a esquecer que já me feri e hoje fosse como se nunca tivesse havido ontem?
E se eu amasse sem medo de perder? Sim! Sem o sentido de o outro me "pertencer".
E se não tivesse, nunca e de todo, medo de me perder?
E se comprasse um bilhete só de ida?
Ou fosse por aí, sem destino, no vaivém da vida, de mãos dadas com o destino?
E se não
repetisse, em dia nenhum, aquilo que fiz no outro dia?
E se eu,
amanhã, deixasse o emprego?
E se me esquecesse da reforma e começasse a deixar de adiar para depois a vida que
não sei se vou viver?
E se
pensasse e não repetisse o que ouvi?
E se não me
manifestasse em relação ao que na realidade não me diz coisa nenhuma, só porque
está na moda?
Ah, e se me
atrevesse a comer, sim, comer, sem tirar uma selfie a comida?
E se eu
comesse o que bem entendesse, sem me preocupar com a linha?
E se eu
disser “boa tarde”, “boa noite”, “bom dia”, quando passar?
E sinto-me
mais ousada:
E se quebrar
o meu pau-de-selfie e, no meio da
multidão, falar com um estranho (!) e lhe pedir que me tire uma fotografia?
E se
perguntar “como estás” e parar realmente para ouvir a resposta?
E se quando
me perguntarem se eu estou bem, em vez do tradicional e forçado “sim,
e tu?”, eu disser que não, que não estou bem coisa nenhuma? Que não! E preciso de um abraço, de um ombro
amigo”?
E se me
atrevesse a ser vulnerável?
E se
dissesse que choro, às vezes?
E que houve momentos em que chorei mais que muito?
E se falar que
tenho medo, sonhos, esperanças?
E se
confessasse que doeu? E apontasse o sítio?
E se,
sorrindo, dissesse também que me curei, e ensinasse, de coração aberto, a cura a
quem está ferido?
Ou, e se eu
disser, despudoradamente, olhando nos olhos de quem me fala, que sou feliz?
Sim! Que
ousado! Que ousado!
… enfim, e
se eu tirasse a máscara e fosse despudoradamente eu em todas as circunstâncias,
em todos os momentos da vida e à frente de quem fosse? Fizesse
política sem gravata e sem saltos, poesia sem camisa ou vestido, amor sem
corpo, ou no corpo, ou com a alma na calma? E se eu
dissesse que não sou perfeito(a), que pequei, que me arrependi, que amei, sofri
e que (sobre/tudo)vivi? Que fui vil, mas nunca deixei de ser santo, também?
Foto: Kellepics, in Pixabay |
E se
dissesse que sou human@, tu, human@ como eu, mas vestid@ das mesmas máscaras
que as minhas, estenderias a mão ou viravas as costas?
sexta-feira, 23 de março de 2018
O sim
"O sim"; Imagem: Janice da Graça |
O sol ia alto
As ruas eram as mesmas
O movimento incessante
As almas cansadas
Num passeio qualquer
Eu e tu
A tua mão na minha
O meu mundo aos teus pés
Um sorriso nos teus lábios
Dizíamos que sim
E isso era nada
E isso era tudo
Perante os olhos do mundo
O ponto
mais alto de nós
segunda-feira, 19 de março de 2018
O QUE DÓI
Quando o fim chegar
Não saberás diagnosticar o
momento
De tanto que se fala da
dor da partida
Serás mais um, como
todos
A acreditar que algum amor
algum dia acaba
Por se dizer que acabou
E que partir pode não
doer, se fugires e te esconderes,
Para não o ver chegar
Partir dói? Pergunto-te.
Partir só dói antes de
partir.
Dói por não teres
completamente estado
Teres-te amordaçado,
negado e calado
Levado o corpo a outro
lugar
Quando o coração sabia bem
onde queria estar
Partir dói? Pergunto-te.
Partir só dói quando te
esqueces que ficaste
Dói o adeus que, aflito
Todos os dias te batia à
alma
Enquanto tu te negavas a
abrir ou a fechar a porta
Como alguém que,
apaixonado pela vida
Se descobre de morte
marcada
E não sabe se há-de
antecipar a morte ou prolongar a vida
Partir dói? Pergunto-te.
Dói a partida que à porta
espreita
O que dói é essa porta
entreaberta
Por onde espreitaste
E depois não a abristes, nem
fechastes
Numa estranha dança
preventiva da vida
Famosa nos salões do mundo
Que uns chamariam bom
senso, e outros, covardia
Partir dói? Pergunto-te.
Não, partir em si não dói
Quando o fim chegar
Depois de se pavonear à
beira do teu espirito
Cada dia maior
Engordado pelo teu medo de
o mandar embora
Não te irá doer
Terás a alma anestesiada
Estarás morno
Insonso
Desprovido de coisas
intensas
Pela dor antecipada que
permitiste que te roubasse os dias
Pelos adeus pequeninos que
disseste
Pelos desencontros que
calaram as chegadas
Partir dói? Pergunto-te.
Ah, mas como dói! Mas não
para ti, que não mereceste tal dor
Partir dói sim
Mas a dor da partida é
para quem viveu
É a dor que só chega aos
guerreiros
Que se negam a abraçar a
calmaria da desistência
A mornice da existência
que não é vida
É um desfecho glorificador
Uma presença intensa
Que se nega a palcos
menores
Onde só esteve quem não se
atreveu a viver mais que metade
A guardar pedaços de vida
para depois
Para ti, outras dores quaisquer
Nunca a glória da dor de
partir
Março de 2017
terça-feira, 13 de março de 2018
Ru e Maria
Sentado no Baloiço. Ilustração: Alaissa De Chavez, pngtree |
Ali o chapéu, daquela viajem ao Macau, acolá os álbuns poeirentos, de páginas amareladas.
Ru colhia, todos os dias, uma flor para sua amada, para lhe recordar que, para cada espinho, há uma rosa. Maria aceitava a rosa, e sorria, recordando-se que, para cada dor, havia um carinho.
Maria, embrulhada no xaile roxo, sentava-se no baloiço. Um esboço de baloiçar prolongado, assistindo o sol tocar o horizonte. A mão trémula, a cabeça, sem cabelos, recostada. O olhar perdido no horizonte, na miragem dos filhos que se haviam perdido no mundo com o tempo. Sem tempo, também.
Maria tinha três filhos, nascidos da sua anterior relação. O primeiro tinha chegado de repente e, com ele, um casamento apressado. Os outros vieram logo a seguir, trazendo anos de sentido a um casal que em muito pouco se entendia. Três filhos. Por anos, a razão de uma vida. Toda a sua vida. Até que conheceu Ru. Ru de olhos brilhantes e sorriso encantador. Ru que era como o mar, em dias de calor. Ru que lhe fazia nascer poemas e pinceladas coloridas em telas brancas. E soube o que era, na verdade, amar.
Separou-se. Poderia ter sido apenas o outono de uma relação entrelaçando-se à primavera de uma outra. Mas não o quis assim o destino. O inverno de permeio foi demasiado intenso. Laços congelaram e partiram-se na frieza da incompreensão. Maria nunca mais viu os filhos, desde que se mudara, para esse cantinho isolado, deixando para traz uma parte do coração.
Os dias passaram-se. A cada dia, Maria levantava-se mais leve, mais pálida, mais triste.
Os dias passaram-se. A cada dia Ru, com o coração mais apertado, era mais rocha, mais porto, mais calor.
Os dias passaram-se. Em cada dia, o telefone quedou-se mudo, o horizonte deserto, os biscoitos de canela de longínquos dias de infância esquecidos na poeira dos tempos.
Rute tinha 81 anos. Maria tinha 75. Rute era cheia de vida. Maria era cheia de morte. Cancro.
Um dia chegou. E foi o último.
Maria cheia de paz, de mãos postas, na sua última cama. Rute cheia de dor, só, na cadeira salpicada de cor-de-rosa, com o olhar posto no horizonte.
Esse dia chegou e foi um dia estranho. O telefone tocou, um carro chegou, os biscoitos de canela eram o tema do dia. Nesse dia, biscoitos de canela cheiravam a dinheiro.
O caixão esteve cheio de flores, os filhos e as noras choraram, depositaram algumas flores e secaram as lágrimas. O tempo era pouco e havia pressa. A casa era da mãe deles, constava. Tinha-a construído com o seu salário de professora e com o lucro dos belos quadros que havia pintado. O que era da mãe, era deles agora, segundo entendiam. Assim o afirmava a lei. Rute? Ah, Rute era doméstica, coitada. Diziam que fazia um guisado fabuloso. «Sim, sim, Rute, obrigadinho por fazer companhia à nossa mãe nos seus últimos dias. Sim, sim, foi uma boa amiga. Deseja levar algo da casa? Um quadro talvez, de recordação? A casa? Venderemos, claro! É muito distante e o dinheiro nos deixa falta. Esperava cá ficar? Ora, mas que estranho, Rute! Afinal, já cá viveu tantos anos. E nem pagava renda, ao que conta. Deve lá ter as suas poupanças, não tem? Para onde há de ir? Ora isso não sei. Não tem ninguém? Ora, de certeza que há de ter alguém! Mas que pena! Ah, más há um lar de idosos muito acessível não muito longe daqui. Será de certeza bem acolhida.
Não se preocupe que tudo se há de arranjar! O tempo é pouco, Rute. O tempo urge! Já vamos andando. Fica o advogado a tratar de tudo. Olhe, Rute, as melhoras para o seu reumatismo. Tudo se há de arranjar, tenha fé em Deus. Sabe que isso é assim. É a lei. Nem é para nós, é para os netos, bem vê. A família, nesses casos. Mas hei de examinar a situação. Talvez lhe mande algum dinheiro, que eu bem gosto de ajudar. Vá, fique com Deus, fique com Deus. E obrigado por tudo, Rute. Obrigado, obrigado!».
Um dia chegou, e foi o último.
Maria, embrulhada no xaile roxo, sentava-se no baloiço. Um esboço de baloiçar prolongado, assistindo o sol tocar o horizonte. A mão trémula, a cabeça, sem cabelos, recostada. O olhar perdido no horizonte, na miragem dos filhos que se haviam perdido no mundo com o tempo. Sem tempo, também.
Maria tinha três filhos, nascidos da sua anterior relação. O primeiro tinha chegado de repente e, com ele, um casamento apressado. Os outros vieram logo a seguir, trazendo anos de sentido a um casal que em muito pouco se entendia. Três filhos. Por anos, a razão de uma vida. Toda a sua vida. Até que conheceu Ru. Ru de olhos brilhantes e sorriso encantador. Ru que era como o mar, em dias de calor. Ru que lhe fazia nascer poemas e pinceladas coloridas em telas brancas. E soube o que era, na verdade, amar.
Separou-se. Poderia ter sido apenas o outono de uma relação entrelaçando-se à primavera de uma outra. Mas não o quis assim o destino. O inverno de permeio foi demasiado intenso. Laços congelaram e partiram-se na frieza da incompreensão. Maria nunca mais viu os filhos, desde que se mudara, para esse cantinho isolado, deixando para traz uma parte do coração.
Os dias passaram-se. A cada dia, Maria levantava-se mais leve, mais pálida, mais triste.
Os dias passaram-se. A cada dia Ru, com o coração mais apertado, era mais rocha, mais porto, mais calor.
Os dias passaram-se. Em cada dia, o telefone quedou-se mudo, o horizonte deserto, os biscoitos de canela de longínquos dias de infância esquecidos na poeira dos tempos.
Rute tinha 81 anos. Maria tinha 75. Rute era cheia de vida. Maria era cheia de morte. Cancro.
Um dia chegou. E foi o último.
Maria cheia de paz, de mãos postas, na sua última cama. Rute cheia de dor, só, na cadeira salpicada de cor-de-rosa, com o olhar posto no horizonte.
Esse dia chegou e foi um dia estranho. O telefone tocou, um carro chegou, os biscoitos de canela eram o tema do dia. Nesse dia, biscoitos de canela cheiravam a dinheiro.
O caixão esteve cheio de flores, os filhos e as noras choraram, depositaram algumas flores e secaram as lágrimas. O tempo era pouco e havia pressa. A casa era da mãe deles, constava. Tinha-a construído com o seu salário de professora e com o lucro dos belos quadros que havia pintado. O que era da mãe, era deles agora, segundo entendiam. Assim o afirmava a lei. Rute? Ah, Rute era doméstica, coitada. Diziam que fazia um guisado fabuloso. «Sim, sim, Rute, obrigadinho por fazer companhia à nossa mãe nos seus últimos dias. Sim, sim, foi uma boa amiga. Deseja levar algo da casa? Um quadro talvez, de recordação? A casa? Venderemos, claro! É muito distante e o dinheiro nos deixa falta. Esperava cá ficar? Ora, mas que estranho, Rute! Afinal, já cá viveu tantos anos. E nem pagava renda, ao que conta. Deve lá ter as suas poupanças, não tem? Para onde há de ir? Ora isso não sei. Não tem ninguém? Ora, de certeza que há de ter alguém! Mas que pena! Ah, más há um lar de idosos muito acessível não muito longe daqui. Será de certeza bem acolhida.
Não se preocupe que tudo se há de arranjar! O tempo é pouco, Rute. O tempo urge! Já vamos andando. Fica o advogado a tratar de tudo. Olhe, Rute, as melhoras para o seu reumatismo. Tudo se há de arranjar, tenha fé em Deus. Sabe que isso é assim. É a lei. Nem é para nós, é para os netos, bem vê. A família, nesses casos. Mas hei de examinar a situação. Talvez lhe mande algum dinheiro, que eu bem gosto de ajudar. Vá, fique com Deus, fique com Deus. E obrigado por tudo, Rute. Obrigado, obrigado!».
Um dia chegou, e foi o último.
Nota: este texto foi originalmente publicado no dia 17 de Julho de 2017, na minha página pessoal do facebook. Foi escrito em reação a uma publicação feita pelo Sr. Miguel Monteiro, Secretário de Estado do Governo de Cabo Verde, na sua página pessoal do facebook, em que este afirmou ser 200% contra o casamento homoafetivo, justificando-se com passagens do Antigo Testamento (num estado laico!), e defendendo que quem vivia esse tipo de relação mereceria a morte. Este texto foi um hino ao amor e a liberdade, posicionando-se entre as vozes que se levantaram em protesto, afirmando-se 200% a favor.
Para quem não tenha acompanhado a polémica, fica o link para uma notícia a respeito, publicada no Jornal a Nação:
http://anacao.cv/2017/07/11/miguel-monteiro-usa-biblia-contestar-casamento-gay-atacado-internautas/
Para quem não tenha acompanhado a polémica, fica o link para uma notícia a respeito, publicada no Jornal a Nação:
http://anacao.cv/2017/07/11/miguel-monteiro-usa-biblia-contestar-casamento-gay-atacado-internautas/
quarta-feira, 7 de março de 2018
CRIOLA
Ilustração: Estudo Musa, João Gomes da Graça, em Artilista.com Ilustração: Estudo Musa, João da Graça |
[Para as mulheres da minha terra no mês das mulheres]
Chega-me, oh criola
Vem, cá, princesa,
rainha, coroada da minha alma
Senta-te, vou-te
falar de ti
Chega-me, oh bela,
apaixonada, arrebatada
Mulher de lava, pedra,
mar e ar
Deusa de
intensidade
Vem, vulcão,
explodir ao pé de mim
Traz as tuas
curvas deliciosas
O teu andar
bamboleante
O teu cheiro
agridoce
Vem, rochedo,
amparar-me
Traz o porto em que aportas os navios do mundo
O solo em que os
teus amores constroem suas aldeias, seus mundos
A tua força onde
os teus fincam suas raízes
Vem, onda, banhar-me
Traz contigo a
morna, o batuque, a coladeira, a chuva, a sementeira
Traz o teu
conhecimento de nós, teu povo, tua terra
Traz a sabedoria
do mundo, do horizonte, das terras distantes
Vem, vento,
transportar-me
Traz na extensão
do teu corpo, a vastidão da tua alma
Traz no teu
sorriso o vendaval que agita os corações
Traz nos teus
braços o sopro da nossa morabeza
Chega-me, oh
criola
Mulher de lava,
pedra, mar e ar
Senta-te, vou-te
falar de ti
Do teu corpo que
gesta sonhos
Do teu coração
onde te cabe a vida
Do teu espírito
onde aportam todas as coisas do mundo
Vem, oh criola
Vem, baunilha, caramelo,
chocolate
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